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domingo, 24 de novembro de 2013

Matutagem Mórbida

De tão velha era bela.
Olhando-a nas reluzências do ar, tinha-se a impressão de uma daquelas pinturas de casas solitárias em meio há um lugar perdido e por isso tão belo da natureza.
De fato, sua posição por hora distava de outra qualquer obra humana pelo menos dez léguas. Estava lá, repousa ao chão nativo, ausente de qualquer calçamento que não, as toras tombadas de cedros, abraçados pelo solo formando uma trilha que se desenhava até a entrada torta.
O sapê sob o telhado de barro da varanda, embora falhado, ainda se valia de sua função, e naquela sombra descansava algumas plantas rasteiras.
Era alta, de palafita, fazia face ao norte, aquelas madeiras persistiam entre décadas e mudanças climáticas, num aprimoramento temporal curiosamente perfeito. 
A impressão que se tinha, era de que a casa, tinha uma raiz, assim como as árvores, que, a prendia e revigorava, fazendo-a cada vez mais parte do lugar.
Ninguém respondia, era fria de silenciosa. Naquela manhã de orvalho, fazia-se musicalmente visual, pelos contrastes de tons, os vivos e os mortos.
A porta abriu-se torta ao primeiro toque, exalou dali uma pressão cheirando a couro, madeira molhada, flores e sangue fresco.
Não houve quem não se ressentisse de solidão, medo, calor e frio. Um ar anfitrião, nos chamou a atenção para o próximo cômodo.
A palha trançada do buriti esvoaçava cansada na porta, dependurada, a se formar um véu que filtrava a entrada de insetos maiores.
Era um corpo humano, sem dúvida, já que, o que havia devorado-o, deixou as pernas, braços e cabeça.
Tinha um aroma quente, de vida, dava-se a impressão de que ainda pulsava sangue, tamanha a vividez das cores e do escorrer.
Agora, de perto, afirmo, é, ou era, uma mulher.
Que final violento, saber como se deu em detalhes era o desejo de todos os presentes, pois não foi só um ataque selvagem, dava-se a impressão, de que, uma fera havia saído de dentro daquela barriga, explodindo-a de dentro para fora e fugido pela janela.

Lembrei daquele matuto, e da sua história, sobre onças e mulheres grávidas...


Rafael Chaaban.


quinta-feira, 21 de novembro de 2013

A Santa Corda Maldita

Belém já havia nos segurado mais tempo do que planejávamos, o Pará em geral, foi um estado que me encantou, fazendo com que espichasse o tempo de parada por lá, era 2003 o ano, segundo semestre, e embalados pela catuaba selvagem e cerveja no saquinho da adega 24 horas do centro, íamos acampando na marquise da Lojas Americanas, de frente para o nosso escritório, a Praça da Republica.
Desde Gurupi, viajávamos em cinco ou seis malucos pela Belém-Brasília e seguíamos agrupados.
Apesar do saneamento precário, (principalmente pra quem vive na rua), Belém nos acolhia como uma avó nas férias escolares. O clima, esfregava na minha cara paulistana o sentido de "País Tropical", acordávamos já com uma chuva de mangas em plena praça central da capital, gente acolhedora,  festeira, simples e genuinamente ricas de culturas e diversidades.
Muita comida, caldo de piranha logo cedo pra repor a energia, frutas das mais variadas formas, suco de taperebá, sorvete de murici, doce de cupuaçu, nem vou falar de açaí, o verdadeiro, moído na hora, com farinha de puba e peixe, não aquele sorvetinho mentiroso do sudeste...
Até a hora da chuva, era fase de recuperação das noitadas passadas, tacaca, maniçoba, só comida forte, após, reiniciávamos o ciclo de bebedeira, violão e coisas do gênero.
Toda semana, íamos à cidades vizinhas coletar matéria prima para o nosso artesanato, dentes de boto, tubarão, esporão, cartilagens, escamas de pirarucu, penas, sementes das mais variadas formas e cores, Jupati, Carnaúba, Pau Brasil, entre tantas, havia ainda a madre pérola e a Jarina, resina fossilizada, era momento de armazenar material, o verão no Nordeste nos aguardava!
Eis que, toda vez que decidia partir, uma nova situação nos segurava, festas, chegadas de malucos, encomendas de material, shows... a bola da vez era o Círio de Nazaré.
O Círio, é um evento conhecido nacionalmente, pela sua grandiosidade, um evento religioso do qual eu não sabia quase nada à respeito.
Uns diziam que não valeria a pena esperá-lo, já que os fiéis não são um público que se atraiam pelo nosso tipo de artesanato, contra partida, uma verdade não se podia ignorar, a cidade receberia um enorme número de turistas, que em grande parte quer sim, levar uma lembrança do lugar.
Ficamos.
Se arrependimento matasse, e quase matou, o que se seguiu no tal do Círio foi basicamente o seguinte: Uma santa de gesso numa plataforma de onde sai uma corda, milhares de fiéis se pisoteiam para seguir a procissão e tocar na corda... não sei bem como é feito no final, mas creio que a corda é cortada em pedaços para que os sobreviventes levem um pedaço.
Durante o evento, além de não vender nada, tive meus trabalhos pisoteados em nome da fé, no dia seguinte, reparei que alguns "sortudos" que tinham um pedaço da corda, apareceram pedindo que nós, artesãos da praça, fizéssemos uma encastoação com arame, afim de transformar aquilo em um pingente, chaveiro ou amuleto. Notei num momento, que um senhor ofereceu cinquenta reais num pedaço da corda que um outro tinha em mãos, nesta hora fui iluminado pelos céus através de uma sacada, à principio, genial!
Corri para o canto comercial mais próximo e adentrei uma casa de materiais para pesca e afins. Pedi para ver os tipos de corda, e encontrei uma idêntica à corda santa.
-Dois metros desta, picado em pedaços de vinte centímetros, por favor.
Guardei na inseparável buroca de couro e voltei correndo para a praça, antes um pouco de chegar ao meu ponto, vi do outro lado da rua o senhor que há pouco, tentava arrematar um pedaço da corda do outro.
Atravessei correndo, e o chamei:
-Amigo, eu fiz um trabalho para uma senhora, e ela me pagou com alguns pedaços da corda da santa, vi que o senhor estava procurando por um desses, por acaso ainda está interessado? - lancei com ar de desdenho.
-Não rapaz, já comprei um pedacinho ali, vou cortar em dois para levar à uma pessoa querida. - respondeu.
-Hum, tudo bem, mas se acaso precisar de mais, tenho uns pedaços comigo... - disse tirando três pedaços da bolsa.
O homem arregalou os olhos dizendo:
-Puxa vida, bem maiores do que o meu, paguei cinquenta reais nesse fiapinho aqui... - mostrou-me.
-Por cinquenta reais eu teria te vendido dois desses! Trabalhados ainda! - esbanjei.
-Está brincando!? Pois então me veja dois pedaços desses!
Bingo!
Já havia conseguido reaver o investimento com cerca de duzentos por cento de lucro!
Acreditem ou não, vendi todas as cordas, comprei mais e coloquei-as em pedaços já trabalhados no pano em exposição.
A alegria acabou quando, outros muitos resolveram fazer o mesmo e de repente, a praça tinha mais de dez vendedores da corda santa! Obviamente, sujou. Alguns taxistas, perceberam o esquema e compraram briga.
Eu que já havia feito a boa, saí dali com a satisfação de um empresário que acabara de fechar um bom negócio. Já era noite, fui beber do outro lado da capital, num bar que eu gostava muito, o Beatles Forever.
Dia seguinte, como era da minha natureza, acordei duro, sem nem o da tapioca com manteiga. Havia bebido, comido e fumado a grana toda na noite passada.
Poucas horas após o despertar, senti um certo enjoo, uma dorzinha de barriga, e não demorou para que eu tivesse que correr ao banheiro público da praça.
Amigos, o que veio a seguir, foi uma das maiores barras que enfrentei em sete anos de estrada, nem tinha caído a chuva da tarde e eu já havia ido ao banheiro mais de vinte vezes, só saia água, tanto de cima como de baixo, a dor era aguda, e parecia piorar a cada hora passada. Não descia nada, nem comida nem água, era engolir e vomitar. Passei o dia deitado no chão, levantando só para ir ao banheiro, de meia em meia hora.
No início da noite, o Pedro Rasta, um gaúcho que vinha viajando conosco desde muito longe, apareceu na praça com uns papelotes de merla, ou pasta, como é chamada lá. Trata-se de uma variação da cocaína fumada, um estágio anterior ao crack.
Sempre usei a droga como anestésico, dores de dente, cabeça ou o que quer que fosse, desapareciam magicamente após um trago, por isso aceitei o convite do Pedrão e com muita dificuldade, levantei e me arrastei até o banco onde ele estava sentado. Me lembro que após dar o primeiro trago, a dor amenizou, cheguei à pensar em sair com ele para o mangueio, afim de levantar dinheiro para usar mais. Foi quando senti uma cócega nos pés, olhei para o chão e vi um rato bem criado com as duas patas em cima do meu pé, o susto fez com que eu levantasse rápido chutando o roedor para o meio da rua, em seguida, tudo ficou preto, caí desmaiado.
Acordei já no mocó, olhei para o lado e vi que uns malucos montavam a minha barraca, senti uma dor intensa e uma fraqueza absurda. Me arrastaram para dentro da barraca e alguém me obrigou a dar umas goladas numa água de coco. Deitei, pingava suor, sentia vontade de ir ao banheiro, mas não tinha condições pra isso, tentei pedir ajuda, tinha a impressão que se forçasse a voz, me cagaria ali mesmo. Foi quando, como um vulcão em erupção eu me lancei pra fora da barraca, esguichando um vômito como uma mangueira de pressão em direção à rua.
A noite foi resumida em vômitos e idas ao banheiro, não tinha mais dinheiro para pagar o velho que me cobrava cinquenta centavos por uso, minha imagem era tão debilitada, que o tiozinho da noite me deixou usar sem pagar mesmo.
Foi uma longa noite, devo ter perdido uns três quilos só naquelas oito horas...
Pela manhã me carregaram para a praça, e a dor atingira seu ápice, eu chorava e gritava como uma criança, um taxista se compadeceu e me colocou em seu carro, deixando-me num hospital público, sei lá onde.
Infecção intestinal diagnosticada, tomei sabe-se lá o que na veia por horas e horas, vomitava num balde que ficava ao meu lado, saí do hospital a noite, um pouco mais aliviado, porém, ainda com muitas dores e mal estar. Nessa caminhada de volta ao centro, chorei. Não mais o choro de dor, mas o choro existencial, o choro sentido, ao me olhar em tal situação, por um instante, minha mente viajou mais de quatro mil quilômetros e foi até a "minha casa", a casa dos meus pais, percebi que já fazia mais de um ano que eu não os via, meses que não ligava, tive vontade de parar num orelhão e ligar para a minha mãe, só para chorar, na tentativa de sentir seu colo. Mas não o fiz, não ligava quando estava bem, porque ligaria estando mal, eu quem decidi cair no mundo, causando enorme preocupação e dor à toda a família. Suportar as consequências era a minha obrigação.
Com muito custo, cheguei ao mocó, a galera estava a milhão, rolava de tudo, um gringo havia patrocinado umas rodadas de bebidas e drogas, Belém é uma das maiores concentrações de malucos de estrada, devia ter uns trinta no mocó, fora os que estavam em hotéis, casas de amigos e outros buracos.
Minha barraca estava armada, alguns camaradas estavam utilizando-a para se drogar, cheguei me arrastando, pedi licença e dormi.
No dia seguinte pela manhã, uma doida me trouxe uma garrafa cheia de cascas e raízes, com um liquido marrom escuro, me mandou tomar, perguntei o que era, me disse ser casca de Jucá. Era de um amargo indescritível, vomitei nos primeiros goles, mas senti que aquilo estava me ajudando, as dores foram amenizando, e o jucá, santo jucá, me salvou.
Três dias depois, já melhor, decidi sair um pouco da babilônia, fui à Icoaraci, distrito de Belém, lugar de pescadores, pelo menos na época, lá também era uma das fontes de matéria prima para meus trabalhos, além de ter uma orla bastante agradável com quiosques que me serviam de mocó a noite.
Comigo, seguiram alguns malucos, irmãos fiéis que viajavam comigo à tempos, Calango, Pedrão, Arrebite, Nando Coqueiro e outros. Eu ainda não estava cem por cento, chegamos lá de noitinha, a galera foi beber num canto e eu fui deitar num quiosque. estava fraco, e decidi não montar a barraca, apenas enrolei os painéis e amarrei junto com mochilas e tudo mais. Peguei no sono rápido e acordei com algo mexendo de baixo da minha cabeça, levantei e vi que minha mochila havia sumido. Rapidamente levantei, recolhi a bagagem e sai a procura da galera, já era alta madrugada, apenas dois quiosques no final da orla estavam abertos, fui pra lá. A galera estava lá bebendo, contei o ocorrido, e percebi que algumas ferramentas minhas estavam entocadas no buraco de uma árvore, na cobertura de sapê do quiosque vizinho, vi meu álbum de desenhos para tatuagens, fomos recolhendo tudo. O ladrão deveria estar ali, notei uns moleques com olhar estranho para nós e antes de que eu falasse algo, o Nando intimou um deles. O Nando Coqueiro, era um pernambucano gente boa, matuto, falava pouco, gostava de cantar ao som do violão, moleque de paz, honesto, não usava drogas, só gostava de maconha e uma boa cachaça, levava esse nome, devido ao seus trabalhos, fazia chapéus, cestos e muitas outras coisas com folhas de coqueiro e bananeira.
Naquela noite, Nando estava muito bêbado, e sua sede por justiça, não o deixou perceber que um dos caras que ele intimou de forma sagaz, estava com uma bigorna de aço na mão, era minha, eu à usava para bater pingentes e filigranas, era do tamanho de um ovo com as extremidades chatas, devia pesar uns três quilos. Nando foi como um gorila pra cima de um dos marginais, mas foi parado por uma bigornada a queima roupa bem na testa. Caiu na hora, apagado, o sangue jorrou de imediato, o samba de porrada se iniciou no quiosque, nativos versus malucos, era paulada, garrafada, alicatada, levei uma solada, adivinha onde? Sim, no estômago... os caras correram e nós ficamos com o Nando. Não sei de onde apareceu um carro e levou ele para o hospital, um grupo o acompanhou, eu recolhi o que pude das minhas coisas espalhadas. Que noite, que semana, que Círio!

Nando ficou bem, com uma bela cicatriz na testa, eu já estava inteiro, era hora de deixar Belém, o Maranhão nos esperava, as contas pareciam estar todas acertadas, havia perdido cinco quilos, até hoje, tenho aversão à cordas e procissões.



Rafael Chaaban.









segunda-feira, 2 de setembro de 2013

O LEITE (derramado) DA MULHER AMADA

O ano é de 2004, pré temporada de verão em Maresias no litoral norte de São Paulo. Sempre gostei de chegar antes do verão nas praias em que escolhia para passar a alta temporada, eram muitas as vantagens em me antecipar: Conseguir uma boa instalação, conhecer os moradores nativos da região, bem como os comerciantes, donos de bares, mercados, restaurantes, e afins.
Assim foi em Maresias, tive a alegria de reencontrar um casal de amigos do interior de São Paulo que estavam trabalhando no ramo de hotelaria, estavam bem instalados numa casa alugada no pé do morro, era mobiliada, agradável, com dois quartos, quintal e há dez minutos da praia.
Carregava meu pequeno herdeiro que acabara de completar três meses de vida.
À convite, dividimos a aconchegante casa com o casal. Tínhamos uma amizade muito saudável, os laços que nos uniam eram os da arte, o Estevão, era músico como eu e também artesão, tocava violão, cantava e era um exímio percussionista, a Mary, uma vocalista de sensibilidade ímpar. Pra completar, nossos gostos musicais andavam de mãos dadas em perfeita harmonia.
A cidade ainda estava "vazia", só os caiçaras com suas pranchas na praia, nos finais de semana alguns poucos turistas apareciam, nessa época, a praça de Maresias era liberada para a exposição de artesanato da malucada, havia espaço para todos, um quiosque de informações e uma rampa que dava acesso à praia.
Debaixo de um pé de jambolão fiz meu ponto, embora não haja lugar marcado, existe um código de ética oculto na estrada, que dá a preferencia de local pra quem chegou antes e/ou tem família. Na estrada esse é só mais um de muitos desses códigos de ética não combinados mas naturalmente respeitados. É claro, sempre há quem o desrespeita, assim como para as leis de uma cidade, e pra esses, sempre ocorre uma repressão.
Toda cidade tem um ponto "oficial" onde a malucada se encontra, geralmente na praça central ou numa avenida movimentada, esses pontos são chamados de "pedra". A pedra em Belém, é a Praça da República, em Goiânia, o Ginásio Rio Vermelho, Curitiba, o Largo da Ordem, Manaus, Praça da Polícia, em São Paulo há mais de uma pedra, São João, Paulista, República... em Maresias era ali na praça de frente pro mar.
Há um mês na cidade, eu já conhecia bastante gente, o dono e os funcionários da padaria, o Edu, do Bar do Edu, moradores, hoteleiros, turistas que tinham casa em Maresias e apareciam aos finais de semana, salva-vidas, surfistas, moleques, putas, traficantes e até o padre. O maluco de estrada, é um personagem incomum que atrai todo tipo de gente, acredito eu, que as pessoas (não preconceituosas) enxergam nele um ser desprovido de julgamentos, aquele que não julga ninguém, que tem a mente aberta, tem experiencia de vida pelas suas andanças, respeita a natureza, e não se surpreende com o segredo de ninguém e por fim, aquele que daqui uns dias vai sumir assim como apareceu. Por isso acredito ter sido tantas vezes escolhido para ouvir confidências e desabafos em geral.
Por estar vindo de uma comunidade Hippie localizada no Norte de Minas Gerais, lá pras bandas de Curvelo na beira do Rio São Francisco, estava eu com um lindo e vasto painel de naturezas, colares das mais variadas sementes que se possa pensar, jatobá, açaí, olho de tigre, pau brasil, carnaúba, saboneteira de macaco, coco, bambu, flamboyant, cedro, jacarandá, tiririca e outras mais. Havia ganhado muita sucata (punhado de material sortido como, pedras, sementes e miçangas) da galera que estava na comunidade mineira, e tinha material pronto pra venda em estoque para todo o verão.
Todo dia era dia de festa, churrasco, cervejada e muita piração. O verão é o auge do ano para os artesãos, muitos malucos passam o ano coletando material para estourar no verão. Assim eu seguia aumentando a coletividade e ganhando dinheiro, usava um chapéu de duende que havia ganho de um camarada em Poços de Caldas-Mg, não o tirava da cabeça e por isso, em Maresias era conhecido como "Gnomo". Assim como na história da formiga e da cigarra, sempre aparecia um maluco que não havia trabalhado o suficiente para a época propícia, e passava o dia entortando arame atrás do pano. Uma vez que mal podia carregar minha própria e imensa bagagem, doei muito material naquele verão, para micróbios que nada tinham e para malucos que já conhecia de outras divisas.
Tranquilo em relação a reposição da mercadoria que saía , passava as tardes tomando cerveja e tocando violão atrás do pano, sempre aparecia um doido com uma percussão, outro violão, uma gaita, flauta e até uma garrafa pra acompanhar. A música é uma porta que dá para um imenso universo, aprendi na estrada em todos esses anos que, onde você parar e dedilhar um violão, aparecerá alguém para interagir, a música é a linguagem universal que atrai o descalço, o engravatado, o honesto, o político... e assim eram as tardes na beira mar entre um mergulho e um baseado e outro.
O fluxo de malucos nas praias nessa época é muito grande, estacionado ali pude ver passar uma galera incontável, todos os dias chegavam e iam vários e variados tipos de malucos, músicos, brigões, micróbios, jagatás, poetas, mercenários, doentes, engraçados, circences, parasitas, gatunos, vegetarianos, latinos, punks, rastas, coroas, novatos, considerados, fugidos, atores e tantos mais. Eis que para a minha alegria, numa dessas levas de malucos reencontrei um grande irmão e parceiro de caminhada de muitos anos, o Xanxan!
O Xan é natural de Biriguí-SP, vinha do norte, havíamos nos visto pela última vez em Felixlândia-MG e Brasília-DF, respectivamente, onde tínhamos feito muito som, na ocasião passada ele viajava com o Cipó, outro grande parceiro de estrada e uma polonesa chamada Paulínia, que tocava lindamente um violino. O Xan é um dos percussionistas mais extraordinários que eu já conheci, viajava com uma tralha imensa, pratos, timba, bongô e vários outros adereços de percussão, andava sempre sozinho, era calado, não bebia muito e usava pouca droga. Tocava tudo de MPB mas era um fã incondicional de metal pesado, cabelos bem compridos e só não o rosto tatuado, conseguia ser mais magro que eu. Carregava sempre uma pequena asa delta com trabalhos de arame e linha.
Como todo reencontro, comemoramos com muita música e bebidas. O Estevão e a Mary também conheciam e gostavam do Xan, que já tinha feito muito barulho na cidade deles em outros carnavais... ficaram muito contentes em recebe-lo e agregá-lo ao nosso lar.
Foi então que numa das noites de churrasco e música em casa que notamos que éramos um grupo musical completo e de alta qualidade. Havia um bar chamado Iguanas Bar, que tinha uma decoração artesanal, bem a nossa cara, e foi lá que decidimos fazer uma proposta de nos apresentarmos numa noite qualquer. O dono do bar pediu pra que fizéssemos uma canja, sem plugar, apenas em acústico pra ele ouvir nosso som.
Assim foi, chegamos no dia combinado, antes do bar abrir e decoramos o palquinho coberto que ficava na parte de fora, no quintal do bar. O Estevão, é um artista plástico fenomenal, possuía um violão que havia pintado com a temática dos Ompaloompas, além disso tínhamos muitos adereços artesanais que penduramos e espalhamos pelo bar, filtros dos sonhos, mensageiros do vento, incensários de todos os tamanhos, a percussão era composta também por vários instrumentos artesanais, indígenas, feitos com sementes, e sucata reciclada, tudo muito colorido e cheio de vida. Trajávamos cartolas e chapéus, calças listradas e envelhecidas, capas, coletes e muitos adereços exclusivos feitos por nós. O Xan montava sua percussão de uma maneira curiosa, nada convencional, era na verdade uma timbatera, ele sentava em cima da timba, organizava as peças e tirava um som descomunal, quem ouvia da rua pensava que era um baterista e um percussionista tocando juntos. Um dia antes, havia chegado o Marco de Marília-SP, um colega nosso que é guitarrista, músico profissional e também passaria aquele verão na cidade. O Marco já tocava com o Estevão, a sintonia foi imediata. Antes mesmo de começarmos a tocar, o nosso possível contratante já se mostrava deslumbrado pelo efeito visual do grupo. Nosso repertório percorria Jorge Ben, Tim Maia Racional, Mutantes, Raul Seixas, Reggae, Caetano, Gil... e outros que a época e o local pediam, como O Rappa, Marcelo D2 e alguns mais. Eu e o Estevão dividíamos os vocais e violões base e nos alternávamos nas percussões, o Marco segurava na guitarra os solos, arranjos e harmonia, a Mary preenchia as vocalizações com sua doce voz e o Xan swingava nas batidas com a precisão de um relógio que nos mantinha sempre no compasso, como um maestro.
Modéstia a parte, nosso som era lindo, tocávamos com alegria de viver, a diversão estava no ar, fluía como a fumaça do incenso, penetrando em nossas almas e nos dando asas para voar por lugares jamais conhecidos por nós. Não deu outra. Fechamos todos os sábados no Iguanas Bar. O dono do bar nos ofereceu um bom cachê e bar aberto durante as apresentações, na alta temporada faríamos por couver.
Precisávamos agora de um nome para o grupo, eram muitas as idéias que brotavam daquelas cabeças enfumaçadas, mas não chegávamos nunca a um consenso. Até que o Estevão tirou de um livro que estava lendo, o nome "O LEITE DA MULHER AMADA", foi risadaria geral, mas depois das gargalhadas, nos olhamos e percebemos que era a nossa cara, ficou.
A sonzeira ia de vento em polpa, eu já estava há 3 meses na cidade e agora com O Leite da Mulher Amada, era ainda mais conhecido, o que me ajudava a faturar ainda mais com o meu artesanato. Numa das nossas apresentações, numa das noites no Iguanas Bar, contamos com a presença do Tomate, o guitarrista do Jô Soares que nos prestigiou e deu uma canja pra galera.
A temporada estava em alta, tudo lotado, gente chegando de toda parte, dezembro avançava e o reveillon se aproximava, recebemos a notícia de que o Iguanas Bar, já havia fechado com um DJ de São Paulo para tocar na virada do ano, antes de nos conhecer, decidimos então procurar um local par fechar um contrato.
Atiramos alto e acertamos, o bar Oasis, que ficava na beira mar, era um dos mais badalados da cidade. Era restaurante e bar, tinha a frente para a avenida e os fundos para a praia, procuramos o responsável, vamos chamá-lo de "M". Nos recebeu com ar prepotente logo dizendo "Cadê o material de vocês?" explicamos que não tínhamos nada em mãos pois éramos um grupo de amigos que haviam se encontrado para fazer um som sem compromisso naquele verão, M torcia o nariz para nós quando uma moça saiu de trás do balcão e perguntou entusiasmada:
-Eles vão tocar aqui M?
-Não, eles não tem nenhum material... - respondeu com desdenha.
-Há M... eles são bons! Vi eles tocando num barzinho esses dias, tava bombando!
A moça descreveu para M a nossa performance, de maneira a convence-lo da nossa qualidade. M nos convidou para tocar no fim de semana, mas estávamos apenas interessados no final de ano. Depois de muita chatice e uma oferta baixa de pagamento, fechamos com M, o reveillon era nosso.
Passou-se uma semana e apareceu em Maresias uma figura, vamos chamá-la de "L", era uma cantora profissional, tinha uma ótima presença de palco e uma voz forte, não me lembro bem se ficou hospedada no hotel em que a Mary e o Estevão trabalhavam, mas sei que se conheceram e ela foi nos ver tocar numa noite de sábado. No intervalo do som, a convidamos para uma canja, e a figura simplesmente arrebentou. Depois da apresentação fomos para a padaria 24 horas fazer um lanche e não sei bem como, a L entrou para o Leite da Mulher Amada naquele momento. Parecia bom ter um reforço profissional para o grupo, até porque não conhecíamos a mau caráter que era a L.
No primeiro ensaio conosco, L perguntou se já tínhamos  fechado algo para o fim de ano, ao saber do cachê oferecido por M à nós, pediu que deixássemos ela resolver essa questão, uma vez que já conhecia M de outros verões. Seu plano era ir sozinha até o Bar Oasis, e tentar vender o show de reveillon para M, não mencionaria que nos conhecia, diria apenas que estava na cidade com a sua banda. E dessa vez faria M assinar um contrato legal.
Assim aconteceu, L retornou com um contrato assinado por M, que contratava O Leite da Mulher Amada para o Jantar Show de reveillon do Oasis. M não sabia que estava contratando a mesma banda, até porque, quando nos contratou pela primeira vez nem sequer perguntou o nome do grupo. O detalhe principal dessa história, é que no contrato agora estabelecido, o valor do cachê havia triplicado!
Chegou o esperado dia, a instrução é que chegássemos ao meio dia, afim de montar o equipamento e deixar tudo pronto para mais tarde.  Fomos eu, Estevão, Marco e Xan. Chegando lá começamos a descarregar o material quando M nos interrompeu com seu jeito arrogante de ser:
-Oououou, que isso aê?
-Que isso o que cara? - respondeu Estevão de cara fechada.
-Vocês sumiram, eu contratei outra banda brother! - disse com certo prazer.
-Bom, então eu acho que você tem que nos pagar uma multa por quebra de contrato... - nesse momento Estevão estendeu uma cópia do contrato e ao ver que havia assinado com a mesma banda, M ficou vermelho e correu ao telefone para ligar para L.
Enquanto esbravejava no telefone, tratamos de agilizar a montagem, estava um belo dia de sol e o clima de festa estava no ar. O esquema montado no Oasis era perfeito, o palco ficava nos fundos do restaurante, numa área aberta, do lado direito do palco ficava o restaurante, do lado esquerdo a praia. Começaríamos a tocar às 20 horas, pagando uma quantia considerável, o freguês poderia desfrutar de um rico buffet e bebida a vontade, enquanto isso, faríamos um set musical leve, música de sala de jantar. Às 23:45, a entrada seria liberada para todos, as mesas retiradas e o acesso para a praia aberto, permitindo que quem estivesse na areia pudesse ver o show. Tudo muito bem preparado.
Voltamos para casa e começamos a concentração, comida leve e cerveja de leve para estarmos bem dispostos pra aquela noite especial.
Faltava cerca de 2 horas para a apresentação quando L veio com seu próximo golpe. Disse-nos que estava preocupada com a qualidade da apresentação, e que pensando nisso havia trazido um "reforço harmônico" para a banda. Tratava-se de três caras, que entraram na casa assim que ela fez o tal pronunciamento de preocupação. Foram nos apresentados por ela como músicos que trabalhavam com ela há muito tempo, ficariam na retaguarda, fazendo a marcação de percussão. Eu e o Xan, macacos velhos que éramos, nos entreolhamos percebendo a intenção de L, mas o resto da banda acabou embarcando na fantasia e abraçando a ideia. na verdade havia uma insegurança no ar, pela falta de experiencia, e pela própria situação a qual as coisas vinham se desenrolando. Mas o fato é que a manobra de L era para papar 4 partes do cachê, provavelmente aqueles caras eram seus parentes (existia uma forte semelhança), e ela os ofereceu jantar e bebida a vontade para, de quebra, tirar uma onda de artistas.
Àquela altura, não seria legal arrumar confusão entre o grupo, além do mais, naquele momento o cachê era o que menos me motivava, tinha uma boa grana guardada, e estava focado apenas em tocar.
Chegamos ao restaurante e iniciamos os trabalhos, um repertório agradável de MPB pra que as pessoas pudessem ouvir, comer e conversar à vontade.
O som estava impecável, muito bem equalizado, tudo correndo bem, o "reforço harmônico" que nem sequer instrumentos tinham, ficaram em segundo plano no palco, um com o pandeiro, outro com um ganzá e o terceiro com um xequerê. Enquanto isso, eu e Estevão, Marco e Xan, sim, suávamos para segurar literalmente o reggae. O restaurante estava lotado, M que até aquele momento mal havia olhado para a nossa cara, passou pela frente do palco e no intervalo de uma música para outra nos fez um elogio do tipo: "Legal galera, tão mandando bem!". M era um burguês, baixinho e troncudo, tinha um cabelinho loiro e crespo, que amarrava para trás, usava sempre camisetas de Jiu Jitsu e surf. Sua mãe, que ficava no caixa, era uma dessas madames carregadas de jóias e maquiagens fortes, que olhava para todos com ar de superioridade.
Faltavam menos de 10 minutos para a meia noite, a praia estava lotada, não podíamos ver pois havia uma especie de toldo que escondia o restaurante de quem estava na areia. e foi nesse momento, já ao som dos primeiros fogos de artifício, que o toldo foi desamarrado e se desenrolou ao mesmo tempo que uma bateria de chuva de prata era disparada do nosso palco, sem ter preparado nada, coincidentemente nessa hora estávamos tocando" Redemption Song" do Bob Marley, foi uma cena mágica que guardo com riqueza de detalhes até hoje, a areia estava completamente tomada de pessoas, que pareceram se voltar para o palco ao mesmo tempo em que se abraçavam e cantavam em coro com a gente. 2005 havia chegado, e na melodia daquela canção, a praia parecia estar em perfeita comunhão pela paz e pela harmonia de viver.
Passado esse momento nostálgico, embalamos uma sequência de músicas dançantes e agitadas e a galera inundou o restaurante dançando e cantando, havia gente em cima de mesas, dançando na água, fazendo rodas, nós nos olhávamos no palco e a energia era fora de controle, não conseguimos nem nos saudar de tão frenética que estava a sequência musical. Algumas lágrimas rolaram discretas pelo palco durante os momentos narrados.
Já eram 1:30 da manhã, quando decidimos fazer uma pausa, a primeira da noite, estávamos tocando há mais de 5 horas sem parar. O grupo tinha uma versatilidade incrível, trocávamos de posição a todo momento, todos tocavam de tudo, era um modelo estilo Os Titãs, cada música era cantada por um integrante. No momento do intervalo, era o Estevão quem estava à frente nos vocais e anunciou a parada. No mesmo momento, surgiu na frente do palco a figura de M, gritando algo do tipo: "CÊS TÃO LOUCOS? PARAR AGORA? PODE CONTINUAR! O BAR TÁ BOMBANDO!!". O Estevão o ignorou, colocando o violão de lado e dando as costas. Pois o pitbull loiro, não contente, subiu ao palco e ordenou que voltássemos a tocar imediatamente, Estevão o encarou de perto e disse que não, pois já era o tempo de fazer um intervalo. Os ânimos estavam exaltados, M e Estevão se encaravam em cima do palco, todos já tinham bebido bastante e aquele sentimento de traição de ambas as partes pareceram brotar novamente naquele momento. Os dois batiam boca em frente ao microfone ligado, de maneira a potencializar ainda mais o que diziam. A galera lá embaixo assistia o acerto de contas. M dizia que havíamos o enganado, Estevão o chamava de homem sem palavra, foi quando o estopim básico de qualquer briga foi acionado, a tentativa de separá-los.
Mary entrou no meio dos dois, que discutiam fervorosamente, não sei quem deu a primeira, só sei que numa fração de segundos, estavam agarrados em cima do palco.
O grupo todo entrou no birimbolo, M caiu por baixo de Estevão, e o usava como proteção da chuva de pancadas que vinham de todo lado, uma galera subiu no palco, eram todos contra M. Afinal, éramos a banda que estava fazendo a festa e tínhamos total empatia da galera.
Instrumentos viraram armas, uns aproveitaram para surrupiar microfones, outros queriam tirar uma casquinha daquele que tinha tesourado o som, eu dei apenas umas batidas de agogô na cabeça de M, mas estava mais interessado em tirar o Estevão das garras dele.
Depois de alguns minutos de confusão, conseguiram arrastar M para dentro do Bar, o cenário era de guerra, mesas viradas, garrafas quebradas, pedaços de instrumento por todo o palco e aos poucos as pessoas se dispersaram pela praia para outros bares.
M ainda queria pegar o Estevão, que foi escoltado rapidamente para casa junto com Mary. O Marco levou um mata leão de M como despedida, L e seu reforço harmônico, viraram peido no meio da batalha. Eu e Xan ficamos para recolher os cacos.
Antes de sairmos, M caminhou até nós, estranhamente não estava com raiva de nós, disse que fomos os únicos que não batemos nele, que faria o pagamento no dia seguinte, e que disséssemos ao Estevão que sumisse da cidade ou ele iria achá-lo e quebrar cada osso de seu corpo.
Pegamos uma marmita e fomos embora.
No dia seguinte, voltamos ao Oasis, L já havia recebido suas 4 partes do cachê, M decidiu fazer um cheque para cada integrante, de maneira que pagaria um por um em mãos, sabia que Mary e Estevão não voltariam lá, talvez nem o Marco... cobra engolindo cobra. Não duvido que L, que era amiga de M, possa ter ficado com as partes de Marco, Estevão e Mary também, o que sei é que eu e Xan, pegamos a nossa e torramos no mesmo dia no bar do Edu, era cerca de 350 reais para cada um.
 Assim, O Leite da Mulher Amada foi desfeito naquele verão, Estevão foi embora da cidade com Mary, Marco também sumiu,  L e o trio harmonia se apossaram da casa em que morávamos assim que saímos.

Como não adianta chorar pelo leite derramado, eu e Xan seguimos em "carreira solo" naquele verão por outras praias... afinal, o show não podia parar.

                    Rafael Chaaban.








sexta-feira, 30 de agosto de 2013

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Pontualidade

TRRRIIIIIIIIMMMMM (!)
Já eram cinco horas e meia de segunda-feira quando num só tapa, Marino calou o despertador. Tinha uma entrevista de emprego naquele dia agendada para as sete horas. Não era uma entrevista qualquer, havia algo de especial,  além da grandiosidade e prestígio daquela empresa, Marino havia sido indicado por um amigo influente, que lhe conseguiu um encaixe extra pra tal oportunidade. Ficaria mal se não aparecesse. Além do mais, já eram 4 meses de desemprego, as contas já não podiam esperar.
Por tanto, Marino não fez corpo mole, saltou sem dar ouvidos à preguiça que lhe pedia mais cinco minutinhos de cama. Tomou um banho mais do que rápido e foi em busca daquela camisa que pedira para ser passada no dia anterior. "Onde foi que a Zezé enfiou essa camisa?", falou consigo mesmo. Zezé era sua empregada, que para o seu azar, havia se esquecido de deixar a tal camisa passada.
Marino procurou e acabou achando a tal camisa amarrotada no armário. Zezé só chegaria às oito, o jeito era ele mesmo passar. Passavam-se também os minutos e Marino começava a se desesperar, ao terminar de se trocar já estava vinte e cinco minutos atrasado de acordo com o cronograma que havia desenhado na mente. O jeito foi sair sem tomar café. Desceu as escadas do prédio de dois em dois degraus, morava no terceiro andar, mas só notou que havia esquecido a carteira quando chegou ao primeiro. Voltou.
Quando finalmente saiu do prédio, se colocou à passos mais do que largos em direção à parada de ônibus que ficava há uma quadra e meia dali, notou que o ponto estava vazio, provavelmente o ônibus para o centro já havia passado, se não lhe falhasse a memória, só haveria outro dali à meia hora. Decidiu pegar um taxi. Caminhou mais três quarteirões até a avenida em busca de um carro, depois de quase vinte minutos de espera avistou um que vinha aparentemente vazio. Sinalizou, o motorista o ignorou. "Maldito filho da puta!", não se conteve em sua raiva.
Marino olhava para o relógio e seu pânico só aumentava, finalmente um taxista parou ao seu sinal, embarcou e pediu agilidade ao motorista, explicando-lhe a importância de seu compromisso. Porém, nem o melhor piloto de corrida poderia fazer algo diante do trânsito lento que encontraram ao sair da área periférica da cidade. Quando andava, o carro não passava de 40Km por hora. Faltavam quinze minutos para o horário marcado quando Marino resolveu saltar do carro e prosseguir à pé. Pelos seus cálculos, estava a umas dez quadras do endereço da entrevista. Cálculo impreciso, eram dezesseis quadras, que só não foram percorridas mais rápido porque o gasoduto estava em obras obrigando os pedestres a caminharem por um corredor estreito em duas filas, uma que ia e outra que vinha. Faltavam três minutos para as sete horas.
Chegou finalmente ao endereço, havia muita gente com faixas e cartazes na frente do prédio, era uma paralisação, grevistas faziam uma manifestação de maneira a impedir a entrada do prédio ao qual ele precisava estar em menos de um minuto. Deu a volta, entrou pelos fundos e subiu as escadas de serviço como um queniano em uma prova com obstáculos.
Os ponteiros marcavam exatas sete horas quando Marino pisou na sala de recepção, se dirigiu até a secretária:
-Bom dia, tenho uma entrevista marcada para as sete horas com o Sr. Vignolli. - tentava controlar a respiração e ajeitar a gravata.
-Pois não, qual é o nome do senhor?
-Marino Cândido de Paula.
-Pode aguardar naquele banco por favor, o Sr. Vignolli ligou avisando que está preso no trânsito e deve se atrasar pelo menos uma hora!

Esperou.


Rafael Chaaban.
                                           

domingo, 18 de agosto de 2013

O Anjo da fronteira


Essa história aconteceu em meados de 2005, na cidade de Corumbá Ms, no extremo Pantanal Sul Mato-Grossense. Cidade esta, rica em arte, turismo e de vasta natureza tropical. Porém, o que me trazia de volta àquela cidade era principalmente sua localização geográfica, fronteira com a Bolívia.
(Puerto Quijarro 2006)
Andando a pé, sem maiores complicações qualquer pessoa atravessava a fronteira (uma rua) e transitava por Puerto Quijarro,  de onde parte o Trem Da Morte, o famoso trem que nos leva até Santa Cruz De La Sierra. Bem, voltemos à Corumbá, nesta ocasião, havia eu conseguido uma barbada, um belo quarto espaçoso, arejado, com banheiro e geladeira. Fechei com o Sr. Davi, um mineiro gente boa que havia tirado uma puta da "vida fácil" e com ela vivia, um pacote econômico, era baixa temporada e circulava pouco dinheiro na cidade, o Sr. Davi me fez trezentos reais mensais a melhor acomodação de sua pensão, custava o dobro, mas diante de nossas caras cansadas e treinadas, dobramos rapidamente o simples homem. Ao contrário dos hotéis "cabeça de porco" que existem por aí, não eram as baratas o maior incomodo, mas sim as caranguejeiras, que em Corumbá são vistas a qualquer hora andando pelas ruas, praças e afins... Baratas mesmo, só me lembro daquelas gigantes, cerca de doze centímetros de cumprimento que voavam a dez, quinze metros de altura, como aqueles mosquitos que zanzam em torno da luz do poste até caírem tontos e agonizarem aos montes no chão.
Eramos eu, meu filho (com oito meses na época) e sua mãe. Vinhamos do centro-oeste e o trajeto até ali, havia me rendido muita matéria prima para meus trabalhos artesanais de escultura em massa epoxi. Além de um grande mostruário de peças, contava ainda com a renda das tatuagens fixas e temporárias e apresentações musicais em ruas, bares e onde quer que fosse. Não vou mencionar ainda, os aviões e quebra jerébas que as praias nordestinas me ensinaram a dar em gringos. Portanto, sempre tinha algum couro de rato na buroca.
Normalmente, na estrada, não me demorava muito nas cidades, uma semana, duas, e pegava o beco, como cantava o Chico Buarque, salvo nas capitais que em via de regra, eram pontos de apoio para reposição de material e badalação, ainda sim, eram poucas as capitais que me seguravam mais de um mês, Belém, Goiânia, São Paulo, Recife... mas o fato é que, em Corumbá a minha droga de preferencia custava 1 Real, enquanto no resto do país, eu pagava 10 Reais em porções ainda menores e de qualidade extremamente inferior àquela. Sim, 1 Real, havia ainda as promoções, 6 papelotes por 5 Reais - 12 por 10, e a caixa de fósforo (cerca de 12 gramas) por 25 reais. Pra "ajudar", havia feito forte "amizade" com um dos tantos patrões do tráfico na cidade em outras épocas (vou chamá-lo de "H"), recebia a visita dele no hotel à cada remessa nova que chegava na cidade, se já não bastasse, tinha eu já na primeira semana daquela temporada mais de dez tatuagens agendadas na favela, entre parentes e amigos do H. Resumindo, droga brotava de toda parte!
Nesta fase da minha vida, eu era um usuário ativo, super ativo, ativíssimo. Quando dormia, acordava usando, usava de manhã, à tarde, à noite e principalmente na madrugada, estava numa fase de fortes alucinações, visuais e auditivas, via aranhas enormes em toda parte, na parede do quarto, nas manchas de óleo no asfalto, e até no mostruário de brincos e colares, o que me fez dar um tapa na orelha de uma cliente certa vez achando que a caranguejeira (um brinco de semente de jacarandá) iria entrar no seu ouvido...
Minha companheira dessa época, era adicta como eu, mas naquele momento da vida, havia conseguido dar um tempo, principalmente pelo nosso filho, que por incrível que pareça, era saudável e muito bem cuidado. Eu não usava a substância na presença dele, ou seja, quase não estava com ele, chegava a alugar outro quarto no mesmo hotel para usar tranquilo, ou bancar um rodízio de pizza seguido de cinema e jogos eletrônicos para ela e suas amigas passarem a tarde e a noite fora, voltando apenas quando o pequeno já estava dormindo, exausto das atividades. Assim, se seguiam os dias, meses, já eram passados 3 ou 4 não lembro ao certo, quando a cidade realizou um grande festival de dança, shows de artistas famosos ao ar livre e muita agitação. Estava eu, preso mais uma vez àquela cidade, não conseguia ir embora, devia estar pesando cerca de 50 quilos, todos os dias prometia a mim mesmo que naquele dia iria fazer a grana da passagem e partir, mas nunca ia. A cidade mais próxima de Corumbá, era Miranda (sentido Campo Grande), que ficava bem afastada e a passagem não era barata. Eramos dois pagantes, e a essa altura, o material já havia se reduzido consideravelmente, dinheiro rolava, mas era pra comer e usar droga, não sobrava para a manhã seguinte.
Numa noite, estávamos expondo na festa da cidade, era uma sexta feira, eu tinha uma novidade que era exclusividade minha na cidade, a tatuagem de henna colorida, se uma tatuagem simples de henna custava a partir de 5 reais (6 dólas), uma colorida partia de 10 mangos, e chegava muitas vezes à 25, 35, 50 paus. Naquela sexta barulhenta e movimentada, eu estava arrebentando de fazer tatuagens no povo, havia uma fila de 6, 7 pessoas que se renovava a cada minuto, já estava tatuando à horas quando percebi que não tinha mais onde guardar dinheiro e parei, estava na compulsão e decidi fechar a loja. Dispensei o povo e sob protestos guardei as pastas de desenhos. Ajuntei aquele amontoado de notas e contei por cima, havia uns 250 Reais em notas de 2, 5 e 10. Estava atrasado com o Sr. Davi, fui ao hotel e dei aquele dinheiro pra ele antes que eu resolvesse usar a primeira dose. Voltei ao pano, já eram cerca de 23 horas e o clima estava pesado na rua, muita garrafa de bebida nas mãos de adolescentes e gangues periféricas da cidade que circulavam em bandos fazendo algazarra e quebrando vidros, achei melhor mandar minha parceira com o pequeno para casa. Fiquei, afim de arrumar algum troco, já que havia ficado sem nenhum centavo.
No quarto havia mantimentos na geladeira.
Pouco antes de ela partir, um grupo de moleques pararam diante ao meu pano, e começaram a pegar os trabalhos e perguntar preços simultaneamente (velha tática de roubo em grupo), já preparei meu Chico Doce (uma barra de madeira maciça que sustentava uma asa delta de colares) e fiquei pronto para esmagar um rato. Um dos sacanas apoiou uma mão no pano, enquanto escorregava um colar peruano de argolas de alpáca para o bolso, e foi naquele braço de apoio que eu dei com tanta força, que por um instante pensei ter decepado o braço do pilantra, na volta ainda peguei mais uns três na pancada enquanto corriam e gritavam me ameaçando... Olhei para a doida e ordenei: "Dá linha com esse moleque, que a pista tá remosa!". Ela se pôs em marcha firme empurrando o carrinho e sumiu da minha vista à caminho do hotel.
Estava tremendo ainda de adrenalina, pedi um trocado para um capixaba companheiro de estrada que expunha ao meu lado e fui tomar uma no bar pra dar uma estabilizada.
Quando voltei, me deparei com uma cena assustadora! Em meio a multidão de galera, a mãe do meu filho vinha com ele no colo agarrado, à passos mais do que largos, quase correndo, chorava com um tom desesperado no olhar! Meu estômago congelou e bateu na garganta, em frações de segundo imaginei que os moleques haviam feito algo à eles. Comecei a caminhar em sua direção e gritava: "O que foi? O que foi?", ela foi se aproximando e dizia chorando:  "Eu não tive culpa! Não tive culpa!".
Já esperava receber o corpo do meu filho sem vida, era uma cena de terror e o tempo pareceu congelar. Finalmente ela me entregou ele nos braços, ainda repetindo: "Não foi minha culpa! Pelo amor de Deus!". Peguei-o no colo e o virei para mim, estava quieto, com os olhos arregalados, não chorava, perguntei de novo o que havia acontecido, e ela disse ainda descontrolada e em prantos: "Ele se queimou, se queimou no fio do ventilador, foi muito rápido, ele puxou e o fio explodiu na mão dele... ". Foi quando percebi que ele estava com a mãozinha fechada e os dedos pretos, girei a pequena mãozinha e no vão entre o dedão e o indicador dava pra ver a carne viva, tentei abrir a mão dele e me apavorei com o que vi! Havia uma queimadura em todo o vão dos dedos, pedaços de fio de cobre estavam cravados na carne branca e esponjosa que se mostrava crua e chamuscada, era uma queimadura de terceiro grau, de cerca de 7 centímetros de circunferência.
Mandei que ela fechasse o pano e me corri dali com ele, eu estava sem camisa e descalço, vi um taxi e não sei nem como, me enfiei dentro dele com passageiro e tudo, me deixaram no PS que ficava há umas 10 quadras dali. Entrei no Pronto Socorro gritando: "EMERGÊNCIA! EMERGÊNCIA", driblei uma mulher que me pediu pra fazer uma ficha e entrei no corredor de acesso restrito aos médicos, invadi o primeiro consultório que vi, um médico atendia um paciente, se espantaram com a minha entrada, mas ao ver a gravidade do caso o médico deu prioridade imediata à nós. Levaram ele para a sala de curativos, eu estava alterado e foram preciso dois guardas municipais para me segurar e me convencer a fazer a porra da ficha.
Fui ao guichê de entrada, não tinha documento algum, expliquei que era estradeiro e nessa hora chegou minha companheira com os documentos e meus trampos enrolados de qualquer jeito numa cesta. Deixei ela fazendo a ficha e voltei pra sala de sutura. O médico veio ao meu encontro e me explicou que ele estava bem, a queimadura era grave, já haviam feito a limpeza e o curativo, ele ficaria de tala por dois dias e depois deveríamos trocar o curativo diariamente. Nesse momento me pediu calma e frisou a importância de que eu comprasse e desse imediatamente os remédios que ele receitaria. Segundo ele, se o tratamento medicamentoso não fizesse o efeito desejado, o ferimento poderia se expandir afetando o tendão, e aí a coisa se complicaria e implicaria em sequelas graves prejudicando o movimento dos dedos.
Meu bravo menininho veio com os olhos úmidos, mas já não chorava mais, tinha uma tala que ia até o meio do bracinho. Procurei saber se haviam disponíveis os remédios os quais ele necessitaria mas não tive sucesso. Eram remédios caros e fortes, uma lista de 9 itens entre medicamentos e curativos. Saímos do hospital ainda em estado de choque com a situação, já devia ser 1 ou 2 horas da madrugada, havia apenas uma farmácia aberta na cidade, nos caminhamos para lá, entrei e pedi par a atendente fazer o orçamento daqueles medicamentos.
120 Reais.
Comecei a ensaiar o pedido de ajuda para ela quando um senhor com estilo de fazendeiro (muito comum naquele lugar) entrou na farmácia e caminhou em nossa direção, brincou com o pequeno que estava quieto no meu colo com sua tala por sobre meu ombro. Perguntou o que havia acontecido, contei rapidamente e já emendei: "Amigo, por favor, será que pode nos ajudar? Tenho uns trabalhos legais aqui comigo, se puder comprar algo... pelo menos pra que possamos comprar os remédios essenciais que são muito caros...", coloquei em suas mãos uma faca embainhada toda trabalhada do cabo a bainha, com couro de sucuri, pedras semi-preciosas, dentes de jacaré e escamas de pirarucu. Ele à pegou, elogiou o trabalho, virou-se para a atendente e disse: "Pode pegar os itens da receita deles e por na sacola!". Fiquei emocionado, passei o pequeno para o colo da mãe e me virei para embalar a faca para ele, é verdade que aquela peça valia 3 vezes o valor em questão, mas àquela altura, estava mais do que bem vendida! Quando me voltei com a peça embrulhada em mãos, perdi o homem de vista, não estava mais dentro da farmácia, fui até a porta e a rua era deserta, nem carro, nem pessoas... voltei desolado para o balcão e pensei que o fazendeiro bondoso havia desistido da compra e nos abandonado, mas para o meu espanto, a caixa me entregou a sacola com os medicamentos e a receita e nos desejou boa sorte. Perguntei sobre o homem e ela não me respondeu atendeu o telefone e se voltou para o interior da farmácia. Olhei para dentro da sacola e havia uma nota fiscal atestando que aqueles itens foram pagos. Saímos sem entender o que aconteceu. Pra onde foi aquele homem? Como sumiu da nossa vista tão rápido?
Naquela noite fiquei de joelhos no pé da cama até amanhecer, o anjinho dormia medicado. Prometi que se ele melhorasse não usaria mais droga enquanto ali estivesse e iria embora daquele lugar!
Em três dias ele já estava batendo palmas e arrancando os curativos com a boca, nem parecia que tinha uma queimadura tão séria, em uma semana, sem usar drogas, levantamos as passagens e saímos da cidade.
O ferimento sarou por completo. Hoje com 9 anos, ficou uma pequena  cicatriz quase imperceptível em sua mão.

NE: Antes de sair da cidade, peguei uma certa quantia da droga para usar quando chegasse no próximo destino. Tecnicamente, não quebrei a promessa. Um ano depois, estaríamos de volta à Corumbá

Rafael Chaaban.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

NASCI - PARA - TE - MATAR

Era uma manhã tomada de ressaca de pinga  na praça central de Paragominas, quando a frente do velho veludo desbotado que suportava meus trabalhos de epoxi, me apareceu aquele homem rústico. Era magro, alto, pele parda queimada pelo sol, rosto cansado mas sem uma ruga e semi oculto pela sombra do chapéu. A barba rala e o olhar desconfiado por baixo da monoselha em V, revelava uma timidez quase que agressiva. Trajava uma camisa escura e suja, de pano grosso, mangas dobradas até antes do cotovelo. Calça de sarja preta, desfiada, segura por um cinto grosso de couro duro empenado. No pé, bota gasta de bico fino e espora de latão.
Pigarreou:
-O sinhô faiz tatuagi di máquina? (perguntava enquanto examinava meus braços rabiscados).
-Faço sim, quer olhar a pasta de desenho? - respondi curioso.
-Mais é di agúia?
-Isso, agulha descartável, material de primeira!
-Quanto quié? (permanecia parado de pé a meia distância).
-Depende o trabalho amigo, não quer olhar os desenhos? (Insisti, enquanto levantava e esticava o álbum de modelos em sua direção).
Respondeu dando um passo atrás:
-Treis palavra! Quanto quié? - parecia impaciente.
- A tatuagem fixa é a partir de cinquenta reais amigo, preciso saber o que exatamente o senhor quer fazer, tamanho, cores, detalhes... aí sim posso dar o preço.
-É simpris, treis palavra!
Percebi que ao contrário da maioria dos que ali paravam para perguntar, aquele homem queria mesmo fazer uma tatuagem, porém, era fechado, de pouca conversa, se eu não facilitasse o diálogo, perderia os cinquentinha.
-Certo, se são três palavras simples, uma cor só e pequena, faço cinquenta pro senhor!
-Faiz aqui memo?
-Não, o senhor escolhe o modelo e nós vamos ao hotel onde estou hospedado, é bem ali, preciso de espaço, higiene e rede elétrica entre outras coisas...
-Vamulá?
-Vamos sim!
Percebi que ele estava realmente disposto a fazer a tatuagem, embora demonstrasse certa rudeza através do semblante e das curtas palavras, parecia ser homem sério e não me faria perder a viagem.
Pedi a um micróbio que olhasse minha loja, peguei o álbum e acenei pra que me seguisse.
Atravessamos a praça, ele acendeu um paiero, pigarreava entre uma escarrada e outra. Dobrando a esquina quebrou o silêncio:
-Qué tomá uma?
-Opa! Bora lá!
Entramos no bar, pediu um conhaque com alcatrão, olhou pra mim, seu olhar dizia mais do que palavras, estava me perguntando em expressão o que eu queria tomar, respondi me utilizando da mesma técnica, num simples e curto abaixar de cabeça e piscar de olhos, disse lhe em silêncio que tomaria o mesmo que ele. Olhou para o mulato atrás do balcão e ajuntou:
-DOIS!
Foi só então que enxerguei-lhe o primeiro sorriso, curto, de canto, mas suficiente pra me mostrar um pouco de alma naquele casco, os dentes eram todos encapados a uma reluzente e dourada camada de ouro, e nessa hora, não sei exatamente o motivo mas, me assustei.
Matamos a um só gole aquele veneno amarelo escuro, quase como bárbaros batemos os copos vazios no balcão. Acendi um cigarro e nos colocamos pela calçada a passos largos e sincronizados.
Meia quadra dali um hotel cabeça de porco nos engoliu, avisei a gorda cansada da "recepção"que era um cliente e que não passaríamos de meia hora no quarto.
Três lances de escada, meti a chave e abri a empenada porta que revelou o estúdio improvisado ao lado da janela. Entramos, ficou de pé a meio metro da porta, pedi que se acomodasse enquanto eu preparava o material.
Enquanto lavava a biqueira perguntei:
-E então, onde vai querer fazer a tatuagem? No braço? No peito?
-Nu pé! - completou seco e emendou: -Possu vê a máquina?
-Claro! Tem essa que uso para riscar e essa outra para preencher... - disse colocando as máquinas em suas mãos calejadas.
-Quais são as palavras que vamos fazer? Preciso tirar o decalque!
Fez um silêncio e enrijeceu a expressão.
Tratando-se de três palavras, esperava eu por: "AMOR DE MÃE" "MARIA TE AMO" "DEUS ME GUIA" "EU TE AMO" ou até "SALVE O CORINTHIANS".
Levantou a cabeça, ajeitou o chapéu e sussurrou erguendo a sobrancelha:
-Nasci pra te matá!
Por uma fração de segundo encarei aquilo como uma declaração ameaçadora e só agora reparava eu, que meu cliente tinha na cintura uma garrucha de cano raiado que foi colocada neste momento em cima do criado.
-Nasci pra te matar? Essa é a frase que o senhor quer? - tentei demonstrar naturalidade.
-É! Imbaxo du pé!
-Na sola do pé?
-É!
-Tem certeza? A sola do pé é uma parte difícil de tatuar, por ser sensível e...
-Num tem pobrema! - interrompeu enfático!
-Bom, são quatro palavras: NASCI - PARA - TE - MATAR.
-Não, só treis: NASCI - PRATE - MATÁ!
Comecei a me arrepender de estar ali, pedi pra que tirasse a bota e esperasse eu tirar o decalque pra que pudesse ver se estava de acordo. Apresentei-lhe o retângulo de papel vegetal com a escrita "NASCI PARA TE MATAR", aprovou.
Revelou-me ser analfabeto, mas sabia contar.
-Tem quatro palavra aí!
Os próximos quinze minutos foram de explanações inúteis referentes a palavras e preposições. Meu exótico cliente deixou claro o que queria tatuar na sola de seu pé: "NASCI PRATE MATAR"
Sorriu mostrando sua dourada arcada ao ver as "três palavras" decalcadas na sola, do calcanhar à bochecha do pé.
-É issu qui eu quéro! Podi furá! Pago u dobro si ficá bão!
Caros amigos, já havia encarado tatuagens difíceis, em locais inapropriados, sob efeito de inúmeras substâncias, até mesmo em veículo em movimento, porém, de longe, essa foi a mais trabalhosa! Aquelas "três palavras" não me tomariam mais do que vinte e cinco minutos em qualquer outra parte do corpo, mas por mais que eu riscasse e embebesse a biqueira de pigmento preto puro, o traço simplesmente não pegava. Embora cascuda, a sola do pé do meu caríssimo cliente sangrava as polpas, eu imaginava a imensa dor que aquele homem estaria sentindo a cada insistente passeio das agulhas no ir e vir dos traços.
Eu suava, olhava para a pistola descansada na cômoda, para o mundarel de papel-toalha ensanguentado no cesto, e a cada higienização, percebia que não estava tendo sucesso. Fiz uma pausa. O resistente e silencioso homem abriu a boca:
-Busca uma pa nóis tomá!
Me deu uma nota de cinquenta e acendeu um cigarro, desci a escada e me dei conta que já estávamos a quase duas horas no quarto, peguei a cagibrina, voltei e o flagrei botando a sola do pé diante ao espelho e sorrindo com o cigarro entre dentes.
-Pricisa tê dó não fio! Carca essa porra aí! - me disse enquanto pegava a bebida.
Dei dois tragos em uma ponta de baseado, coloquei novo par de luvas e retomei o ofício.
O pé do bicho já era puro inchaço e vermelhidão, eu sofria, enquanto ele nem sequer mudava a expressão.
Foram três horas de atividades, falei um pouco da minha história conforme ele perguntava, dele, só arranquei que era garimpeiro e vinha do Piauí.
Trabalho acabado, não quis colocar a proteção. Calçou a bota, foi ao banheiro e se lavou.
-Quanto ti devo? - Perguntou com meio sorriso.
-Olha amigo um trabalho desse tamanho e nesse local complicado é pra mais de cem reais, aqui! Em São Paulo duzentos! Mas vou te cobrar o combinado... cinquenta.
-Toma! - Espichou uma nota de cem e retirando um pequeno saco de pano do bolso, abriu-o cuidadosamente em cima da cama e com os dedos pincelou algo muito pequeno. Me mandou estender a mão e pelos olhos arregalados, por um instante achei que estava me dando alguma droga rara. Soltou minúsculas pedrinhas amarelas na palma da minha mão e disse:
-Cuidado! Tem mais di duzentos reau aí, vai no seu Carlo do lado da rodoviária e troca!
Eram pequeninas pepitas de ouro, quase farelo. Agradeci e descemos a escada, ainda pagou a diária do hotel e se despediu com um aceno de mão.
O ouro somado ao dinheiro, me rendeu cerca de trezentos reais, que foram gastos naquela mesma noite. Porém, até hoje imagino de que formas aquela curiosa figura exibiu ou ainda exibe sua nada comum tatuagem de agúia...


Rafael Chaaban.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

O CIRCO

O circo chegou
Aliás, sempre esteve aqui
No circo há malabaristas, petistas e parlamentaristas

Há também a pior atração
A cúpula do centrão
Também há mágicos que só pensam enganar sua platéia

No circo há também palhaços
Que só ficam na parte de fora
E os poucos anões se perdem no meio dos grandes

O circo chegou
Chegou também a tristeza de um povo
Um povo que não tem paz e união
Só uma única opção
O circo

O circo do planalto
O planalto da alegria circense
E os que fazem o circo
Os mágicos os incompetentes
São também os donos da ilusão

O circo chegou.

(Música feita por mim inspirada no poema de um artista de Diadema-SP em meados de 1998)

terça-feira, 16 de julho de 2013

O homem invisível


Desde sua infância, Mauro Slaiviesi buscava se ausentar da percepção das pessoas, não chamando a atenção ou mesmo se escondendo por horas, debaixo de mobílias, atrás de árvores, dentro dos mais diversos buracos que pudesse encontrar. Não era uma criança bagunceira ou comportada, simplesmente não era.
Mauro Slaiviesi, passou da fase de se esconder para a de se tornar invisível. Sim, o rapaz desenvolveu uma habilidade estranha de não ser notado, para ele, tal talento o tornava menos suscetível aos perigos da vida em sociedade, acreditava que passando desapercebido pelas pessoas, evitava maiores problemas.
Na padaria:
-Puxa! Dei uma nota de vinte por engano a um sujeito... mas não consigo me lembrar de como ele era!
No bar:
-Marta, você pegou o telefone daquele rapaz de ontem a noite?
-Não... ele parecia ser tão legal... o mais engraçado é que não me lembro do rosto e nem do nome dele!
Na cena do crime:
-Havia alguém no local na hora do assalto policial?
-Sim, aquele rapaz de chapéu... ué, ele tava aqui agora mesmo!
Assim cada vez mais, Mauro Slaiviesi se tornava invisível para o mundo ao seu redor.
Esta nada notável personagem, perdeu muito cedo seus pais, tendo assim que se virar pela tumultuada metrópole de São Paulo. Entre algumas experiências profissionais, se destacou pela habilidade na arte da tapeçaria. Seu chefe, gostava da qualidade de seu trabalho.
-Mauro, você é meu melhor funcionário, já pensou em sair dos fundos deste salão e vir pra trás do balcão atender os clientes? Você poderia ganhar muito mais dinheiro!
-Não Sr. Colpenhard... Gosto de ficar aqui, é mais seguro.
Ao fim de cada expediente, Mauro Slaiviesi se colocava pelos bondes lotados e ruas movimentadas da cidade em direção ao seu refúgio, seu apartamento alugado na rua Thomas Arguino, número 18 em Moema.
Ali, no recanto de seu lar, se sentia aliviado e tranquilo em relação aos perigos da vida metropolitana. Embora seguisse sempre o mesmo cronograma diariamente, não era notado em seu prédio, nem mesmo pelos moradores de seu andar.
Numa manhã de um dia de folga, Mauro Slaiviesi acordou cedo, regou as plantas, tomou um café e desceu para apanhar o caderno matutino de notícias. Era um leitor cartesiano e página por página percorria atenciosamente da primeira à ultima palavra dos textos.
Já havia passado pelos cadernos de economia, esportes, classificados, horóscopo, quando... (!)
O que seu nome estaria fazendo na seção de obituários daquele dia?
Correu ao telefone:
-Alô! É do Diário de notícias??? Quero comunicar um terrível engano... Meu nome é Mauro Slaiviesi e EU ESTOU VIVO!
-Só um momento senhor... Sim, aqui na relação de óbitos de hoje consta que "Na sexta feira, 28 de maio na rua Thomas Arguino, número 18,  Mauro Slaiviesi morreu vítima de um infarto fulminante... velório na manhã de sábado no Cemitér...
-Estou dizendo que eu sou  Mauro Slaiviesi  e não estou morto!
-Desculpe senhor, só publicamos dados que constam em nossos arquivos...
-Pois seu arquivo está errado! Eu estou vivo, inclusive estou falando da rua Thomas Arguino, número 18!
-Como lhe disse senhor, o dado consta em nossa central de dados e não há o que eu possa fazer nesse momento...
TUM! Desligou irritado o telefone.
A funcionária do jornal, virou-se para um colega e desabafou:
-Um maluco diz que cometemos um erro ao publicar seu nome na lista de obituários de hoje... Eu nunca cometo enganos... o meu trabalho é simplesmente publicar as listas conforme recebo... quem morre não é minha responsabilidade!
 Mauro Slaiviesi ainda extasiado, sentou em sua cama e passou a analisar o que deveria fazer naquele momento. Procurar a polícia? Com qual motivo? O que poderia acontecer de mal diante daquela situação? Afinal, era um cidadão comum, honesto, possuía um emprego fixo e nada devia a ninguém. Além disso, não tinha filhos ou família, quem poderia se importar?
Decidiu então fazer sua caminhada no parque, já que naquele dia frio e nublado, poucas pessoas estariam lá.
Durante a tarde, a funcionária do jornal preocupada com a sua reputação impecável, se esforçou em encontrar o erro na informação, ligou para a funerária, porém, sem sucesso. Era sábado e a mesma se encontrava fechada.
Aberta porém, estava a casa de móveis Laerte Madeiras.
O velho Laerte passava o olho pelo jornal e:
-Minha Nossa! Armando, nós vendemos um guarda roupas para um tal de  Mauro Slaiviesi da rua Thomas Arguino?
-Sim, faz uns dias... em doze prestações...
-Puta merda!  Mauro Slaiviesi morreu ontem!
-Caramba... e agora?
-Agora você vai lá buscar aquele guarda roupa, e vá rápido, antes que seja incorporado ao inventário dele!
O empregado obedeceu.
Ao toque da campainha o mau humorado e displicente síndico do prédio arrastou seu corpo pesado e cansado até a porta de entrada.
-Quem?
-Boa tarde senhor, viemos recuperar um móvel que se encontra no apartamento de  Mauro Slaiviesi, neste prédio, temos a nota...
-Vou chamar o morador!
-Pelo que nos consta ele faleceu ontem, correto?
-Não sei sobre isso, de onde vem a informação?
-Está aqui meu senhor. (mostrou o jornal).
-Aguardem aqui, vou ligar para o dono do prédio...
Ao telefone:
-Sim Geraldo, sei que você é meu síndico do prédio da Thomas Arguino, qual é o problema?
-Tem dois homens aqui querendo reaver um móvel do apartamento de  Mauro Slaiviesi do primeiro andar, estão com um jornal que diz que ele está morto...
-Espere vou conferir!
Fez-se um silêncio e após dois minutos retornou:
-De fato,  Mauro Slaiviesi morreu ontem, não me lembro desse sujeito mas, consta que ele está atrasado em um mês com o aluguel... libere esses caras e em seguida troque a fechadura do apartamento, tranque e coloque um anuncio de "aluga-se" imediatamente. Temos um direito assegurado por lei, podemos reter os bens dele... ele nos deve, vou ligar para o nosso advogado!
Assim se fez.
Enquanto o síndico trocava a fechadura uma vizinha chegava e perguntou:
-O que está havendo?
- O Sr. Slaiviesi morreu. Estou trocando a fechadura...
-Puxa nunca vi esse homem sair ou chegar...
O dia ia minguando quando  Mauro Slaiviesi se pôs a caminho de volta para o jantar, chegando a porta percebeu que haviam trocado sua fechadura. Confuso, desceu as escadas e foi até a sala do síndico.
-Sr.Geraldo! Não consigo entrar, minha porta está trancada...
-Quem é? (gritou embriagado o homem rabugento)
- Mauro Slaiviesi do primeiro andar!
-Não ele morreu! Some daqui seu vagabundo!
E somando a ação a fala soltou o cachorro.
 Mauro Slaiviesi correu dali, sabia que não arrumaria nada com aquele ignorante bêbado, resolveu então ir ao Décimo quinto distrito policial.
Chegando lá, se deparou com uma fila grande e muita confusão. Ao sufoco conseguiu que alguém lhe atendesse:
-Pois não senhor...
-Boa noite, meu nome é  Mauro Slaiviesi, moro na rua Thomas Arguino 18, fiquei trancado pra fora de casa.
-Tem algum documento senhor?
-Só a carteirinha do sindicato.
-Quem o teria trancado pra fora?
-O síndico acha que eu morri...
-Por que ele acharia isso?
-Por que meu nome consta na seção de obituários... está havendo um grande engano!
-Hum... olha meu senhor, a esta hora da noite não creio que o diário de noticias nos atenderá, além do mais, estamos afogados em casos realmente sérios nesta noite de sábado... aconselho ao senhor voltar pra casa, por favor, colabore conosco!
 Mauro tentou argumentar, em vão, o funcionário se perdeu em meio a uma pilha de papéis e um grupo de pessoas que o chamavam por todos os lados.
Caminhou até uma praça, comprou um cachorro quente e sentou-se num banco. Não percebeu que ao seu lado estava um mendigo que dormia sentado, assim como também não foi percebido.  Comeu em silêncio, refletiu e num brado desesperado:
-EU NÃO ESTOU MORTO!
O sujeito ao seu lado num só pulo saiu em disparada,  Mauro Slaiviesi chorou.
Decidiu então ligar para seu patrão, que a esta altura já havia lido seu nome no jornal e estava encucado.
O telefone tocou.
-Alô (Atendeu a esposa do patrão).
-Alô, aqui quem fala é  Mauro Slaiviesi...
-Só um minuto!
Virou-se assustada para o marido e disse:
-Querido... um homem ao telefone... diz ser...  Mauro Slaiviesi ...
-Oh meu Deus! Já sei o que está acontecendo... Vamos desligue, desligue rápido e tire o telefone do gancho!
A esposa assim o fez.
-O que está havendo querido?
-Foram eles, foram eles... esta ligação foi um aviso! Foi uma maneira do sindicato me avisar que mataram o pobre Slaiviesi...
-Porque fariam isso querido?
-Dois representantes locais estão disputando o controle sobre a minha loja! Querem colocar um funcionário deles na loja... para isso tinham que abrir uma vaga...
-Oh meu Deus!
-Vamos me passe o telefone, vou ligar no sindicato!
Suando e tremendo ligou.
-Alô... Vitor... aqui é o  Colpenhard... da tapeçaria... eu, digo... você venceu! Pode mandar seu homem, ele começa na segunda pela manhã!
 Em um canto do parque, um morador de rua dormia em um banco quando foi perceptado por um nada simpático guarda.
-Circulando vagabundo, não pode vadiar aqui!
-Policial, não sou vagabundo, sou uma vítima da cidade!
-Anda, circulando!
-NINGUÉM SE IMPORTA! SOMOS UM FARDO PARA A SOCIEDADE... LIXOS, A SEREM VARRIDOS PELO SISTEMA PRA BAIXO DO TAPETE DA INTOLERÂNCIA! SOMOS PESSOAS INVISÍVEIS...
-Só estou cumprindo ordens... (disse dando as costas e indo embora).
O mendigo caminhou em direção a uma galeria de esgoto seca, ao entrar percebeu que alguém dormia no seu lugar de costume. Era  Mauro Slaiviesi.
-Ora, veja o que temos aqui, outro náufrago da sociedade! Ei amigo, este lugar é meu!
-Desculpe... não tenho pra onde ir... meu problema é temporário... fui listado entre os falecidos no jornal, fui trancado pra fora de casa e ignorado por todos como se não existisse...
-Rá!! OUTRA VÍTIMA DO SISTEMA! HAHAHA! Ei, escute... eu sou só mais um lixo da cidade, porém você pode resistir!
-Acho que tem razão... segunda feira pela manhã irei ao meu emprego, meu chefe vai me ajudar!
Sorriu amarelo e dormiu.
No interior do estado, um homem lia o jornal.
-Lúcia, você leu o obituário no jornal de sexta?  Mauro Slaiviesi morreu! Ele não é seu parente?
-Sim! ...que pena.
-Será que ele valia algo, digo, não devíamos tentar descobrir?
-Ora Vagner, isso não me parece bom, eu quase não o via...
-Não seja tola! Ele pode ter deixado um tesouro pra você... você é prima dele!
-Muito distante... no jornal nem sequer mencionam meu nome...
-Ele tinha mais alguém?
-Não, até onde sei era solitário.
-Pois é! Se ele deixou alguma herança... você é a primeira da fila! Eu vou ligar para o nosso advogado.
Vagner ligou e foram orientados a entrar com uma ação, já que eram os únicos representantes legais de  Mauro Slaiviesi. Caso houvesse algum valor, pensão ou apólice de seguro, seriam sim os beneficiados.
Seria portanto necessário que procurassem os documentos do finado, que provavelmente estariam em seu apartamento em São Paulo.
-Arrume minha mala Lúcia, amanhã cedo vou à capital!
Segunda pela manhã, Mauro Slaiviesi foi até a tapeçaria, entrou e ouviu um grito que vinha dos fundos.
-Quem está aí?
-Sou eu Slaiviesi! Onde está o Sr. Colpenhard?
-Ele vai atrasar hoje... é só com ele?
-Eu trabalho aqui amigo, quem é você? (perguntou enquanto entrava no galpão)
-Sou o tapeceiro da loja!
-Como assim? Eu sou o tapeceiro aqui!
-Não me venha com essa! O tapeceiro antigo morreu!
-EU NÃO MORRI!
-Um minuto senhor, vou ligar para o chefe...
Foi ao telefone e ligou para o sindicato.
-Alô...
-Oi chefe, é o Dino, é o seguinte... tem um sujeito aqui dizendo que é o tapeceiro da loja, ele me parece ser um vagabundo, o que devo fazer?
-Aqueles filhos da puta do sindicato dos tapeceiros devem ter mandado seu próprio sujeito dizendo que é o tapeceiro daí... fique tranquilo! Volte ao trabalho, vou dar um jeito nisso!
 O homem desligou o telefone e voltou-se a seu sócio.
-Vamos dar um jeito naqueles safados, eles querem guerra... terão guerra!
-O que faremos?
-Você vai pegar um dos nossos homens e vão até aquela loja, livrem-se daquele sujeito!
-Devemos quebrar o pau nele?
-Não, não... ele é só um laranja. Vamos pregar uma peça naqueles idiotas! Levem-no para bem longe, para fora do perímetro urbano e larguem-o lá... sem violência... quando voltar já terá anoitecido, hahaha... o sindicato dos tapeceiros vai entender a mensagem e sairão do nosso território!
-Pode deixar com a gente!
Enquanto isso, Slaiviesi insistia pelo seu espaço na loja.
-Este emprego é meu!
-O senhor está me incomodando, sai pra lá!
-Ligue para o meu patrão, ele me conhece!
-Já disse que ele vai se atrasar, aguarde quieto!
Num ato de desespero, Slaiviesi tentou puxar o homem pra fora do galpão, mas o sujeito era grande e pesado, num só tabefe botou Slaiviesi para dormir.
Chegaram os paus mandados para buscá-lo, Slaiviesi acordou já dentro do carro.
-Quem são vocês? Pra onde estão me levando?
-Relaxa, vamos dar uma voltinha!
-Vocês não sabem quem eu sou, deixem-me sair!
-Você é o laranja do sindicato dos tapeceiros, agora cale a boca! Não queremos encrenca!
 Slaiviesi se desesperou, o que fariam com ele? Olhou pela janela e percebeu que estavam fora do perímetro urbano. Atravessavam uma ponte quando  Slaiviesi decidiu agir.
Escorregou a mão para a porta traseira e num ágil impulso, a abriu e pulou do carro em movimento.
Caiu rolando pelo asfalto e bateu a cabeça num pilar de sustentação, grogue e arrebentado deslizou pela ribanceira caindo desacordado mas ainda vivo na margem da represa.
Os homens no carro pararam e o perderam de vista, decidiram ir embora, o serviço estava feito.
Veio a tarde, a noite e  Slaiviesi foi encoberto pela água que subiu de nível ao fim da tarde.
No interior:
-Olhe Lúcia, recuperei os documentos de seu primo, ele deixou a escritura das terras do seu tio em Minas Gerais! Vai nos render uma nota!
No sindicato:
-Deixamos o sujeito bem longe da capital, a última vez em que o vimos, caminhava rua abaixo...
No Diário de Noticias:
-E agora Sr.a Mendes, gostaria de tornar sua aposentadoria memorável, estamos lhe conferindo nossa medalha editorial de erro zero e um título no valor de cinco mil!


Rafael Chaaban.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Fernando Pica Doce

    Filho de trecheiros, Fernando Junqueira nunca soube com certeza se nasceu em Apiaí ou Iporanga, certeza mesmo é que saíra do Vale do Ribeira antes de completar o primeiro ano de vida, em meio aos embrulhos e a bagagem rumou no sentido norte do mapa. Sua mãe que outrora se destacava pela disposição física que a vida estradeira exige, jazia ofegante, e só não mais triste porque tinha nos braços, aquele rechonchudo e simpático dorminhoco, seu primogênito. As belas pernas torneadas e os longos e firmes braços, se mostravam agora flácidos e castigados pela celulite.
    Foi em Anápolis que a pobre mãe de Fernandinho, como o apelidara uma recepcionista de hotel, se viu obrigada a recorrer a uma ama de leite, pois seus seios mais pareciam duas ínguas em carne viva, e convenhamos, o néctar materno é bem mais em conta do que as latas do leite em pó que se encontrava no armazém. Na maternidade Nossa Senhora de Lourdes, se fez achar Zulmira, uma negra grande, de costa e anca largas, pele macia e brilhante. Ama de três bebês recém nascidos, aqueles fartos seios de bicos inchados e úmidos, encarregaram-se também da alimentação de Fernandinho. Duas ou três mamadas diárias eram suficientes, vez ou outra, Zulmira não era encontrada, nesses casos, recorriam a Marta ou Lavínia, que doavam seu precioso colostro ao pequeno Fernando.
    O leite de três mulheres, além da mãe, contribuíram para o bom desenvolvimento do mimado e rodeado de seios Fernandinho.
    O pai de Fernando, conhecido como Zé do Rosário, era um cabra da peste, saído das bandas da Paraíba, tomava uns bons pileques e vivia a plantar desordens. Naquele ano em que Fernandinho completaria o seu quarto de vida, o velho Zé do Rosário, cujo o organismo vinha sendo consumido por uma febre dos diabos e uma insistente e aguda dor abdominal, dormia de pêlo no chão quando a morte o recolheu deste mundo.
    Fernandinho agora era todo de mãe, e ela dele. Sozinha e insegura a errante, agora sem a companhia de seu parceiro nos saculejos da viajada vida, correu para a casa de uma tia, lá pras bandas do Gurupi do Tocantins. E foi ali que Fernando, paparicado e bem cuidado pelas duas tias solteiras e sete primas (além de sua mãe), cresceu e viveu sua infância. Infância essa, um tanto quanto sem regras e sem posses, pés no chão de terra, casca de ferida, unhas sujas, só não pior devido ao zelo da mulherada, em meio a molecada farroupa se confundia como que camuflado, nem sua mãe distinguia  qual daquele bando de moleques e molecas era a sua prole.
    A renca que ia dos sete aos treze anos, se articulavam pelas ruas do centro, às voltas da matriz, no mercado e nas feiras, uns a esmolar, outros a afanar descuidos, vender jornal, cuidar de carros, passar santinhos e outras tantas. Sempre atrás do pororó, que se convertia em doces, baladeiras, papagaios, bulícos e afins. Porém, Fernando se destacava pela sua sorte com as generosas senhoras que volta e meia o levavam para tomar uma garápa, comer paçoca, um açaí moído, um bom caldo de piranha ou mesmo o chambarí matinal.
    Aos quatorze anos, Fernandinho agora era Nando, cuidado pelas tias, mãe e primas, era menos encardido, sua facilidade e desenvoltura natural ao trato feminino, lhe substituíra as molecagens junto aos barrigudinhos, por brincadeiras caseiras com Mirella, Jaqueline, Stefany, Malú, Sophia, Ana e Mariana, as primas, cujas as mães trabalhavam fora  e as confiavam aos cuidados da irmã pródiga, a mãe de Fernando.
    Stefany era de colo, suas irmãs Ana e Sophia, tinham nove e onze anos respectivamente. O outro grupo de irmãs era composto por Malú, que era um ano mais nova do que Nando, Mirella que era a mais velha da patota e as gêmeas Jaqueline e Mariana na pureza de seus cinco anos recém completados.
    Nando liderava o grupo:
    -Vamos brincar de casinha! Eu sou o papai, Mirella é a mamãe, a Jaque e a Mariana são as filhinhas...
    -E eu? - indagava a bruta e desengonçada Sophia. -Você é a empregada! - provocava o cabeça de chave. E continuava a delegar: -Vocês (apontava para Ana e Malú), são nossas amigas que virão nos visitar.
    No canto do pátio empilhavam caixas em cadeiras de maneira a se formar um cercado, enquanto as meninas se ocupavam em montar a cozinha, surrupiando talheres e panelas da casa, Nando forrava o chão com um tapete velho e realizava "Aqui é o nosso quarto!". Como era fácil para ele convencer as "filhas" a dormirem viradas para a parede, deslocar as "amigas" ao outro extremo do quintal e mandar a "empregada" fazer compras (apanhar limões e pinhas no terreno vizinho), e aí sim, se virar para sua "esposa" e chamá-la à dormir.
    Deitados de conchinha, Nando e Mirella se roçavam com um desejo tímido e cauteloso, que não era assumido, porém era consentido por ambos. Assim, até que as peças figurantes da gostosa brincadeira se cansassem da não diversão, os dois iam descobrindo os prazeres sensoriais do corpo e da carne.
    Os dias seguiam, formando meses, e enquanto a mãe de Nando se consumia em afazeres domésticos com Stefany encaixada ao quadril, agradecia aos céus pelas crianças que brincavam em silêncio no fundo do pátio.
    Vez ou outra, Nando mudava os papéis, alternando Mirella por Ana e Malú. A primeira se invocou a princípio, mas foi rapidamente convencida por Nando, de que, se não fizesse desta maneira, poderiam as outras contar tudo para a mãe, e aí, adeus brincadeira! Embora Mirella fosse sua preferida, Nando gostava da variação, dando os primeiros sinais claros de sua necessidade pelas conquistas e cuidados femininos. E foi a partir de tal necessidade que certo dia, a pouco delicada Sophia foi a escolhida para o papel de "mamãe" que dormiria com o "papai" no doce lar de Nando. Mau começara a  brincadeira e:
    - Hora de dormir! - ordenava papai Nando.
    Não foi o escorrer do nariz, nem a ressecada e armada cabeleira de Sophia que repeliram a atuação amorosa de Nando, mas sim a cotovelada nas costelas seguida do pescotapa que levara ao encochar a prima, que por sua vez correu a tagarelar para sua mãe o abuso do primo, que naquele dia não pode encarar ninguém dominado pela vergonha.
    "Isso acontece. É normal nessa idade."
    "Coitado, ele é criado só com meninas... É compreensível."
    "Já sabemos que o Nando não é um maricas."
    Nando ouvia de canto os comentários das tutoras, o acontecido passou como por desapercebido.
    No ano seguinte, Nando que era um aluno regular na escola estadual que frequentava, tinha como melhores colegas, três garotas de sua sala de aula, era o xodó da professora, até porque, não andava as aprontações com os moleques da turma. E foi numa festa junina escolar, que através de um correio elegante bem mandado, se tornou namorado de Joaquina, a prenda mais jeitosa do colégio. Namoro pré-adolescente, típico de cidade pequena, mãos dadas, encontros na praça do coreto após a missa de domingo e sorvete de cupuaçu. Saudavam-se com beijinho no rosto, mas vez ou outra, num canto aqui ou acolá, arrancavam-se  algumas bitocas na boca.
    Em casa nando aprendeu a ser discreto, não se ausentava dos olhares maternais (todos os três), cuidava-se principalmente com Mirella, cuja a cama passou a ser visitada por ele no andar macio da madrugada. E foi com ela que Nando se deliciou em sua primeira relação sexual aos dezesseis anos, Mirella que aos seus dezoito anos era muitíssimo mais madura que o primo, tratou e aconchegou aquele corpo sem forma que tremia vacilante por cima do seu.
    Nando já não dava tanta importância à Joaquina, e sem a necessidade de usar as palavras, foram se afastando, lenta e pacificamente ao fim do ano letivo.
    Fernando se sentia mais homem do que nunca, repetia a experiência com Mirella e aprimorava seu desempenho a cada dia.
    Naquele ano Nando namoraria a melhor amiga de Joaquina, a doce Bia, depois viriam ainda: Juliana, Ana Rosa, Maria das Dores, Mirian e até a filha do diretor, a pequena Luara. Para Nando não era necessário terminar um namoro para iniciar outro, e em casa, andava por conflitos com Mirella, por ter iniciado a vida sexual de Ana. Malú namorava um colega seu, só por isso escapou a seus domínios, pelo menos até aquele fim de ano na casa de uma amiga da família em Palmas.
    E assim, Nando em sua maioridade concluiu o ginásio e se lançou à Palmas, na capital teria mais campo a correr e garantir seu futuro, afim de dar um bom resto de vida a sua sofrida mãe. Trabalhava de dia e estudava de noite em cursos preparatórios.
    Aos vinte e um anos mudou-se para Imperatriz do Maranhão, onde conquistara uma bolsa de estudo. O curso? Pedagogia. Iniciava-se ali, uma jornada de estudos, onde, dos setenta e quatro alunos matriculados, apenas doze eram homens, quatro casados, dois religiosos fervorosos, três homossexuais e dois outros que não passaram do terceiro semestre. Ali estava Nando, rodeado novamente de mulheres, era aluno assíduo, mas adorava ser cuidado, deixando que as colegas de grupo se encarregassem de certos detalhes, como revisões, acabamentos finais e pesquisas mais detalhadas. sua liderança entre as colegas de curso era natural e invejável, era um ótimo orador e articulador, disputado pelos grupos de estudo.
    Nando não bebia, não fumava e raramente perdia uma noite de sono, a menos que fosse com uma bela representante do sexo oposto,  e em cima de uma cama. Visitava regularmente a casa onde cresceu, era festa quando Nando chegava, nos feriados santos, férias e mesmo em finais de semana surpresa.
    Mirella, Malú e Ana casaram-se, as duas últimas já eram mães, Sophia se conservava intragável e seguia para o ofício de "titia". As outras iam apontando para a vida e tinham Nando como herói. bem como as tias e sua mãe, que se regozijavam pelo sucesso do homem da família.
    Os anos de faculdade chegavam ao fim, e eram marcados na memória de Nando através das conquistas que colecionava, Joara, Sirleide, Conceição, Ana Maria, Cláudia, Michelle, Ariadna, Cristiane, Viviane, Tatiane e outras tantas "anes".
    Formado e bem remunerado, o agora Diretor Fernando Junqueira do Colégio São Damião em São Luís, casou-se com a professora Carla, e casou na hora certa, pois dali três meses, sua querida mãezinha partiu desta vida castigadora. Já no primeiro ano conjugal Carla engravidou, Nando ia contrariando a sua sina e era fiel a sua esposa. Fernando sonhava com seu herdeiro, chamaria-se Fernando Junior, e aos quatro meses da gestação a ultrassonografia afirmou: -É menino!
    Quanta alegria, iniciou-se a decoração do quartinho, os planos, os sonhos. Ensiná-lo a jogar bola, andar de bicicleta, rodar peão e é claro, os macetes do universo feminino, como cativar e conquistar uma mulher, uma não, muitas durante sua vida!
    Eis que, no sétimo mês de gestação, num rotineiro pré natal veio a bomba!
    -Sr. Fernando... - hesitou o médico. -O bebê está bem, tudo dentro do normal esperado por nós, porém... houve um... equívoco, em relação... ao...
    -Desembucha doutor, o que que há!? - indagou impaciente.
    -Nos enganamos em relação ao sexo... o senhor será pai de uma menina.
    Fernando ficou pasmo, não disse nada, saiu do consultório de olhos arregalados e andar robótico, caminhou com semblante assustado até o carro, e o dirigiu em profundo silêncio reflexivo até sua casa. Lá sentou-se em sua poltrona do papai, e naquele instante os sonhos com seu moleque foram substituídos por um trailer de sua vida, percebeu que não sabia como lidar com uma menina, paralisado ficou por cerca de vinte minutos, de repente, acordou num estalo e começou a folhear desesperadamente a lista telefônica.
    -O que procura Fernando? - perguntou assustada sua esposa.
    Com suor que lhe escorria e voz embargada gaguejou:
    -Um convento!


Rafael Chaaban.






sexta-feira, 5 de julho de 2013

Não há por onde


A mesma gota de orvalho que se faz diamante raro na manhã da rosa,
é gota lamacenta desperdiçada ao chão pisado em trovas.

A gentileza emprestada e a paciência exercitada,
bem como a espera de uma chegada,
traduz e seduz como quem não quer nada,
um cego cantante deposto na estrada.

De longe o ouvir do jorrar da fonte,
o choro cantado do sol no horizonte,
desnuda aspereza,
inflama a beleza,
revela a pureza,
toalha na mesa.

Rufar de tambor,
revela o clamor,
de todas as coisas que de natureza são belas,
sorriso de filho,
olhar na janela,
se bem expressado por compositor,
não há por onde se não pelo Amor.


Rafael Chaaban.

terça-feira, 2 de julho de 2013

BIG BOOM BRASIL

    Boom!
    E os gatos de almofadas se arrepiaram, vendo o enxame de gafanhotos descer por sobre sua farta colheita. Os anões acordaram! Fizeram se gigantes, e não mais pela seleção, mas pela indignação.
   Boom!
   O que foi que aconteceu? Cansaram do "pão e circo"? Enjoaram diante a novela?
   Boom!
   Fizeram se valer do direito, trocaram a lágrima da fila que não anda pela voz que o lacrimogênio não cala.
   Boom!
   Emparedaram os excelentíssimos de tal forma a Bial nenhum botar defeito.
   Boom!
   Corre da bomba da imprensa parcial, da alienação de efeito moral e da promoção do desvio de foco pela paixão nacional! Corre, mas corre pra cima, e depois, interrompe a corrida pra voltar pra correria. Amanhã é outro dia e o imposto não espera, bem vindo a nova era, não se deixe morrer.

Rafael Chaaban.