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terça-feira, 16 de julho de 2013

O homem invisível


Desde sua infância, Mauro Slaiviesi buscava se ausentar da percepção das pessoas, não chamando a atenção ou mesmo se escondendo por horas, debaixo de mobílias, atrás de árvores, dentro dos mais diversos buracos que pudesse encontrar. Não era uma criança bagunceira ou comportada, simplesmente não era.
Mauro Slaiviesi, passou da fase de se esconder para a de se tornar invisível. Sim, o rapaz desenvolveu uma habilidade estranha de não ser notado, para ele, tal talento o tornava menos suscetível aos perigos da vida em sociedade, acreditava que passando desapercebido pelas pessoas, evitava maiores problemas.
Na padaria:
-Puxa! Dei uma nota de vinte por engano a um sujeito... mas não consigo me lembrar de como ele era!
No bar:
-Marta, você pegou o telefone daquele rapaz de ontem a noite?
-Não... ele parecia ser tão legal... o mais engraçado é que não me lembro do rosto e nem do nome dele!
Na cena do crime:
-Havia alguém no local na hora do assalto policial?
-Sim, aquele rapaz de chapéu... ué, ele tava aqui agora mesmo!
Assim cada vez mais, Mauro Slaiviesi se tornava invisível para o mundo ao seu redor.
Esta nada notável personagem, perdeu muito cedo seus pais, tendo assim que se virar pela tumultuada metrópole de São Paulo. Entre algumas experiências profissionais, se destacou pela habilidade na arte da tapeçaria. Seu chefe, gostava da qualidade de seu trabalho.
-Mauro, você é meu melhor funcionário, já pensou em sair dos fundos deste salão e vir pra trás do balcão atender os clientes? Você poderia ganhar muito mais dinheiro!
-Não Sr. Colpenhard... Gosto de ficar aqui, é mais seguro.
Ao fim de cada expediente, Mauro Slaiviesi se colocava pelos bondes lotados e ruas movimentadas da cidade em direção ao seu refúgio, seu apartamento alugado na rua Thomas Arguino, número 18 em Moema.
Ali, no recanto de seu lar, se sentia aliviado e tranquilo em relação aos perigos da vida metropolitana. Embora seguisse sempre o mesmo cronograma diariamente, não era notado em seu prédio, nem mesmo pelos moradores de seu andar.
Numa manhã de um dia de folga, Mauro Slaiviesi acordou cedo, regou as plantas, tomou um café e desceu para apanhar o caderno matutino de notícias. Era um leitor cartesiano e página por página percorria atenciosamente da primeira à ultima palavra dos textos.
Já havia passado pelos cadernos de economia, esportes, classificados, horóscopo, quando... (!)
O que seu nome estaria fazendo na seção de obituários daquele dia?
Correu ao telefone:
-Alô! É do Diário de notícias??? Quero comunicar um terrível engano... Meu nome é Mauro Slaiviesi e EU ESTOU VIVO!
-Só um momento senhor... Sim, aqui na relação de óbitos de hoje consta que "Na sexta feira, 28 de maio na rua Thomas Arguino, número 18,  Mauro Slaiviesi morreu vítima de um infarto fulminante... velório na manhã de sábado no Cemitér...
-Estou dizendo que eu sou  Mauro Slaiviesi  e não estou morto!
-Desculpe senhor, só publicamos dados que constam em nossos arquivos...
-Pois seu arquivo está errado! Eu estou vivo, inclusive estou falando da rua Thomas Arguino, número 18!
-Como lhe disse senhor, o dado consta em nossa central de dados e não há o que eu possa fazer nesse momento...
TUM! Desligou irritado o telefone.
A funcionária do jornal, virou-se para um colega e desabafou:
-Um maluco diz que cometemos um erro ao publicar seu nome na lista de obituários de hoje... Eu nunca cometo enganos... o meu trabalho é simplesmente publicar as listas conforme recebo... quem morre não é minha responsabilidade!
 Mauro Slaiviesi ainda extasiado, sentou em sua cama e passou a analisar o que deveria fazer naquele momento. Procurar a polícia? Com qual motivo? O que poderia acontecer de mal diante daquela situação? Afinal, era um cidadão comum, honesto, possuía um emprego fixo e nada devia a ninguém. Além disso, não tinha filhos ou família, quem poderia se importar?
Decidiu então fazer sua caminhada no parque, já que naquele dia frio e nublado, poucas pessoas estariam lá.
Durante a tarde, a funcionária do jornal preocupada com a sua reputação impecável, se esforçou em encontrar o erro na informação, ligou para a funerária, porém, sem sucesso. Era sábado e a mesma se encontrava fechada.
Aberta porém, estava a casa de móveis Laerte Madeiras.
O velho Laerte passava o olho pelo jornal e:
-Minha Nossa! Armando, nós vendemos um guarda roupas para um tal de  Mauro Slaiviesi da rua Thomas Arguino?
-Sim, faz uns dias... em doze prestações...
-Puta merda!  Mauro Slaiviesi morreu ontem!
-Caramba... e agora?
-Agora você vai lá buscar aquele guarda roupa, e vá rápido, antes que seja incorporado ao inventário dele!
O empregado obedeceu.
Ao toque da campainha o mau humorado e displicente síndico do prédio arrastou seu corpo pesado e cansado até a porta de entrada.
-Quem?
-Boa tarde senhor, viemos recuperar um móvel que se encontra no apartamento de  Mauro Slaiviesi, neste prédio, temos a nota...
-Vou chamar o morador!
-Pelo que nos consta ele faleceu ontem, correto?
-Não sei sobre isso, de onde vem a informação?
-Está aqui meu senhor. (mostrou o jornal).
-Aguardem aqui, vou ligar para o dono do prédio...
Ao telefone:
-Sim Geraldo, sei que você é meu síndico do prédio da Thomas Arguino, qual é o problema?
-Tem dois homens aqui querendo reaver um móvel do apartamento de  Mauro Slaiviesi do primeiro andar, estão com um jornal que diz que ele está morto...
-Espere vou conferir!
Fez-se um silêncio e após dois minutos retornou:
-De fato,  Mauro Slaiviesi morreu ontem, não me lembro desse sujeito mas, consta que ele está atrasado em um mês com o aluguel... libere esses caras e em seguida troque a fechadura do apartamento, tranque e coloque um anuncio de "aluga-se" imediatamente. Temos um direito assegurado por lei, podemos reter os bens dele... ele nos deve, vou ligar para o nosso advogado!
Assim se fez.
Enquanto o síndico trocava a fechadura uma vizinha chegava e perguntou:
-O que está havendo?
- O Sr. Slaiviesi morreu. Estou trocando a fechadura...
-Puxa nunca vi esse homem sair ou chegar...
O dia ia minguando quando  Mauro Slaiviesi se pôs a caminho de volta para o jantar, chegando a porta percebeu que haviam trocado sua fechadura. Confuso, desceu as escadas e foi até a sala do síndico.
-Sr.Geraldo! Não consigo entrar, minha porta está trancada...
-Quem é? (gritou embriagado o homem rabugento)
- Mauro Slaiviesi do primeiro andar!
-Não ele morreu! Some daqui seu vagabundo!
E somando a ação a fala soltou o cachorro.
 Mauro Slaiviesi correu dali, sabia que não arrumaria nada com aquele ignorante bêbado, resolveu então ir ao Décimo quinto distrito policial.
Chegando lá, se deparou com uma fila grande e muita confusão. Ao sufoco conseguiu que alguém lhe atendesse:
-Pois não senhor...
-Boa noite, meu nome é  Mauro Slaiviesi, moro na rua Thomas Arguino 18, fiquei trancado pra fora de casa.
-Tem algum documento senhor?
-Só a carteirinha do sindicato.
-Quem o teria trancado pra fora?
-O síndico acha que eu morri...
-Por que ele acharia isso?
-Por que meu nome consta na seção de obituários... está havendo um grande engano!
-Hum... olha meu senhor, a esta hora da noite não creio que o diário de noticias nos atenderá, além do mais, estamos afogados em casos realmente sérios nesta noite de sábado... aconselho ao senhor voltar pra casa, por favor, colabore conosco!
 Mauro tentou argumentar, em vão, o funcionário se perdeu em meio a uma pilha de papéis e um grupo de pessoas que o chamavam por todos os lados.
Caminhou até uma praça, comprou um cachorro quente e sentou-se num banco. Não percebeu que ao seu lado estava um mendigo que dormia sentado, assim como também não foi percebido.  Comeu em silêncio, refletiu e num brado desesperado:
-EU NÃO ESTOU MORTO!
O sujeito ao seu lado num só pulo saiu em disparada,  Mauro Slaiviesi chorou.
Decidiu então ligar para seu patrão, que a esta altura já havia lido seu nome no jornal e estava encucado.
O telefone tocou.
-Alô (Atendeu a esposa do patrão).
-Alô, aqui quem fala é  Mauro Slaiviesi...
-Só um minuto!
Virou-se assustada para o marido e disse:
-Querido... um homem ao telefone... diz ser...  Mauro Slaiviesi ...
-Oh meu Deus! Já sei o que está acontecendo... Vamos desligue, desligue rápido e tire o telefone do gancho!
A esposa assim o fez.
-O que está havendo querido?
-Foram eles, foram eles... esta ligação foi um aviso! Foi uma maneira do sindicato me avisar que mataram o pobre Slaiviesi...
-Porque fariam isso querido?
-Dois representantes locais estão disputando o controle sobre a minha loja! Querem colocar um funcionário deles na loja... para isso tinham que abrir uma vaga...
-Oh meu Deus!
-Vamos me passe o telefone, vou ligar no sindicato!
Suando e tremendo ligou.
-Alô... Vitor... aqui é o  Colpenhard... da tapeçaria... eu, digo... você venceu! Pode mandar seu homem, ele começa na segunda pela manhã!
 Em um canto do parque, um morador de rua dormia em um banco quando foi perceptado por um nada simpático guarda.
-Circulando vagabundo, não pode vadiar aqui!
-Policial, não sou vagabundo, sou uma vítima da cidade!
-Anda, circulando!
-NINGUÉM SE IMPORTA! SOMOS UM FARDO PARA A SOCIEDADE... LIXOS, A SEREM VARRIDOS PELO SISTEMA PRA BAIXO DO TAPETE DA INTOLERÂNCIA! SOMOS PESSOAS INVISÍVEIS...
-Só estou cumprindo ordens... (disse dando as costas e indo embora).
O mendigo caminhou em direção a uma galeria de esgoto seca, ao entrar percebeu que alguém dormia no seu lugar de costume. Era  Mauro Slaiviesi.
-Ora, veja o que temos aqui, outro náufrago da sociedade! Ei amigo, este lugar é meu!
-Desculpe... não tenho pra onde ir... meu problema é temporário... fui listado entre os falecidos no jornal, fui trancado pra fora de casa e ignorado por todos como se não existisse...
-Rá!! OUTRA VÍTIMA DO SISTEMA! HAHAHA! Ei, escute... eu sou só mais um lixo da cidade, porém você pode resistir!
-Acho que tem razão... segunda feira pela manhã irei ao meu emprego, meu chefe vai me ajudar!
Sorriu amarelo e dormiu.
No interior do estado, um homem lia o jornal.
-Lúcia, você leu o obituário no jornal de sexta?  Mauro Slaiviesi morreu! Ele não é seu parente?
-Sim! ...que pena.
-Será que ele valia algo, digo, não devíamos tentar descobrir?
-Ora Vagner, isso não me parece bom, eu quase não o via...
-Não seja tola! Ele pode ter deixado um tesouro pra você... você é prima dele!
-Muito distante... no jornal nem sequer mencionam meu nome...
-Ele tinha mais alguém?
-Não, até onde sei era solitário.
-Pois é! Se ele deixou alguma herança... você é a primeira da fila! Eu vou ligar para o nosso advogado.
Vagner ligou e foram orientados a entrar com uma ação, já que eram os únicos representantes legais de  Mauro Slaiviesi. Caso houvesse algum valor, pensão ou apólice de seguro, seriam sim os beneficiados.
Seria portanto necessário que procurassem os documentos do finado, que provavelmente estariam em seu apartamento em São Paulo.
-Arrume minha mala Lúcia, amanhã cedo vou à capital!
Segunda pela manhã, Mauro Slaiviesi foi até a tapeçaria, entrou e ouviu um grito que vinha dos fundos.
-Quem está aí?
-Sou eu Slaiviesi! Onde está o Sr. Colpenhard?
-Ele vai atrasar hoje... é só com ele?
-Eu trabalho aqui amigo, quem é você? (perguntou enquanto entrava no galpão)
-Sou o tapeceiro da loja!
-Como assim? Eu sou o tapeceiro aqui!
-Não me venha com essa! O tapeceiro antigo morreu!
-EU NÃO MORRI!
-Um minuto senhor, vou ligar para o chefe...
Foi ao telefone e ligou para o sindicato.
-Alô...
-Oi chefe, é o Dino, é o seguinte... tem um sujeito aqui dizendo que é o tapeceiro da loja, ele me parece ser um vagabundo, o que devo fazer?
-Aqueles filhos da puta do sindicato dos tapeceiros devem ter mandado seu próprio sujeito dizendo que é o tapeceiro daí... fique tranquilo! Volte ao trabalho, vou dar um jeito nisso!
 O homem desligou o telefone e voltou-se a seu sócio.
-Vamos dar um jeito naqueles safados, eles querem guerra... terão guerra!
-O que faremos?
-Você vai pegar um dos nossos homens e vão até aquela loja, livrem-se daquele sujeito!
-Devemos quebrar o pau nele?
-Não, não... ele é só um laranja. Vamos pregar uma peça naqueles idiotas! Levem-no para bem longe, para fora do perímetro urbano e larguem-o lá... sem violência... quando voltar já terá anoitecido, hahaha... o sindicato dos tapeceiros vai entender a mensagem e sairão do nosso território!
-Pode deixar com a gente!
Enquanto isso, Slaiviesi insistia pelo seu espaço na loja.
-Este emprego é meu!
-O senhor está me incomodando, sai pra lá!
-Ligue para o meu patrão, ele me conhece!
-Já disse que ele vai se atrasar, aguarde quieto!
Num ato de desespero, Slaiviesi tentou puxar o homem pra fora do galpão, mas o sujeito era grande e pesado, num só tabefe botou Slaiviesi para dormir.
Chegaram os paus mandados para buscá-lo, Slaiviesi acordou já dentro do carro.
-Quem são vocês? Pra onde estão me levando?
-Relaxa, vamos dar uma voltinha!
-Vocês não sabem quem eu sou, deixem-me sair!
-Você é o laranja do sindicato dos tapeceiros, agora cale a boca! Não queremos encrenca!
 Slaiviesi se desesperou, o que fariam com ele? Olhou pela janela e percebeu que estavam fora do perímetro urbano. Atravessavam uma ponte quando  Slaiviesi decidiu agir.
Escorregou a mão para a porta traseira e num ágil impulso, a abriu e pulou do carro em movimento.
Caiu rolando pelo asfalto e bateu a cabeça num pilar de sustentação, grogue e arrebentado deslizou pela ribanceira caindo desacordado mas ainda vivo na margem da represa.
Os homens no carro pararam e o perderam de vista, decidiram ir embora, o serviço estava feito.
Veio a tarde, a noite e  Slaiviesi foi encoberto pela água que subiu de nível ao fim da tarde.
No interior:
-Olhe Lúcia, recuperei os documentos de seu primo, ele deixou a escritura das terras do seu tio em Minas Gerais! Vai nos render uma nota!
No sindicato:
-Deixamos o sujeito bem longe da capital, a última vez em que o vimos, caminhava rua abaixo...
No Diário de Noticias:
-E agora Sr.a Mendes, gostaria de tornar sua aposentadoria memorável, estamos lhe conferindo nossa medalha editorial de erro zero e um título no valor de cinco mil!


Rafael Chaaban.

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