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sexta-feira, 19 de julho de 2013

NASCI - PARA - TE - MATAR

Era uma manhã tomada de ressaca de pinga  na praça central de Paragominas, quando a frente do velho veludo desbotado que suportava meus trabalhos de epoxi, me apareceu aquele homem rústico. Era magro, alto, pele parda queimada pelo sol, rosto cansado mas sem uma ruga e semi oculto pela sombra do chapéu. A barba rala e o olhar desconfiado por baixo da monoselha em V, revelava uma timidez quase que agressiva. Trajava uma camisa escura e suja, de pano grosso, mangas dobradas até antes do cotovelo. Calça de sarja preta, desfiada, segura por um cinto grosso de couro duro empenado. No pé, bota gasta de bico fino e espora de latão.
Pigarreou:
-O sinhô faiz tatuagi di máquina? (perguntava enquanto examinava meus braços rabiscados).
-Faço sim, quer olhar a pasta de desenho? - respondi curioso.
-Mais é di agúia?
-Isso, agulha descartável, material de primeira!
-Quanto quié? (permanecia parado de pé a meia distância).
-Depende o trabalho amigo, não quer olhar os desenhos? (Insisti, enquanto levantava e esticava o álbum de modelos em sua direção).
Respondeu dando um passo atrás:
-Treis palavra! Quanto quié? - parecia impaciente.
- A tatuagem fixa é a partir de cinquenta reais amigo, preciso saber o que exatamente o senhor quer fazer, tamanho, cores, detalhes... aí sim posso dar o preço.
-É simpris, treis palavra!
Percebi que ao contrário da maioria dos que ali paravam para perguntar, aquele homem queria mesmo fazer uma tatuagem, porém, era fechado, de pouca conversa, se eu não facilitasse o diálogo, perderia os cinquentinha.
-Certo, se são três palavras simples, uma cor só e pequena, faço cinquenta pro senhor!
-Faiz aqui memo?
-Não, o senhor escolhe o modelo e nós vamos ao hotel onde estou hospedado, é bem ali, preciso de espaço, higiene e rede elétrica entre outras coisas...
-Vamulá?
-Vamos sim!
Percebi que ele estava realmente disposto a fazer a tatuagem, embora demonstrasse certa rudeza através do semblante e das curtas palavras, parecia ser homem sério e não me faria perder a viagem.
Pedi a um micróbio que olhasse minha loja, peguei o álbum e acenei pra que me seguisse.
Atravessamos a praça, ele acendeu um paiero, pigarreava entre uma escarrada e outra. Dobrando a esquina quebrou o silêncio:
-Qué tomá uma?
-Opa! Bora lá!
Entramos no bar, pediu um conhaque com alcatrão, olhou pra mim, seu olhar dizia mais do que palavras, estava me perguntando em expressão o que eu queria tomar, respondi me utilizando da mesma técnica, num simples e curto abaixar de cabeça e piscar de olhos, disse lhe em silêncio que tomaria o mesmo que ele. Olhou para o mulato atrás do balcão e ajuntou:
-DOIS!
Foi só então que enxerguei-lhe o primeiro sorriso, curto, de canto, mas suficiente pra me mostrar um pouco de alma naquele casco, os dentes eram todos encapados a uma reluzente e dourada camada de ouro, e nessa hora, não sei exatamente o motivo mas, me assustei.
Matamos a um só gole aquele veneno amarelo escuro, quase como bárbaros batemos os copos vazios no balcão. Acendi um cigarro e nos colocamos pela calçada a passos largos e sincronizados.
Meia quadra dali um hotel cabeça de porco nos engoliu, avisei a gorda cansada da "recepção"que era um cliente e que não passaríamos de meia hora no quarto.
Três lances de escada, meti a chave e abri a empenada porta que revelou o estúdio improvisado ao lado da janela. Entramos, ficou de pé a meio metro da porta, pedi que se acomodasse enquanto eu preparava o material.
Enquanto lavava a biqueira perguntei:
-E então, onde vai querer fazer a tatuagem? No braço? No peito?
-Nu pé! - completou seco e emendou: -Possu vê a máquina?
-Claro! Tem essa que uso para riscar e essa outra para preencher... - disse colocando as máquinas em suas mãos calejadas.
-Quais são as palavras que vamos fazer? Preciso tirar o decalque!
Fez um silêncio e enrijeceu a expressão.
Tratando-se de três palavras, esperava eu por: "AMOR DE MÃE" "MARIA TE AMO" "DEUS ME GUIA" "EU TE AMO" ou até "SALVE O CORINTHIANS".
Levantou a cabeça, ajeitou o chapéu e sussurrou erguendo a sobrancelha:
-Nasci pra te matá!
Por uma fração de segundo encarei aquilo como uma declaração ameaçadora e só agora reparava eu, que meu cliente tinha na cintura uma garrucha de cano raiado que foi colocada neste momento em cima do criado.
-Nasci pra te matar? Essa é a frase que o senhor quer? - tentei demonstrar naturalidade.
-É! Imbaxo du pé!
-Na sola do pé?
-É!
-Tem certeza? A sola do pé é uma parte difícil de tatuar, por ser sensível e...
-Num tem pobrema! - interrompeu enfático!
-Bom, são quatro palavras: NASCI - PARA - TE - MATAR.
-Não, só treis: NASCI - PRATE - MATÁ!
Comecei a me arrepender de estar ali, pedi pra que tirasse a bota e esperasse eu tirar o decalque pra que pudesse ver se estava de acordo. Apresentei-lhe o retângulo de papel vegetal com a escrita "NASCI PARA TE MATAR", aprovou.
Revelou-me ser analfabeto, mas sabia contar.
-Tem quatro palavra aí!
Os próximos quinze minutos foram de explanações inúteis referentes a palavras e preposições. Meu exótico cliente deixou claro o que queria tatuar na sola de seu pé: "NASCI PRATE MATAR"
Sorriu mostrando sua dourada arcada ao ver as "três palavras" decalcadas na sola, do calcanhar à bochecha do pé.
-É issu qui eu quéro! Podi furá! Pago u dobro si ficá bão!
Caros amigos, já havia encarado tatuagens difíceis, em locais inapropriados, sob efeito de inúmeras substâncias, até mesmo em veículo em movimento, porém, de longe, essa foi a mais trabalhosa! Aquelas "três palavras" não me tomariam mais do que vinte e cinco minutos em qualquer outra parte do corpo, mas por mais que eu riscasse e embebesse a biqueira de pigmento preto puro, o traço simplesmente não pegava. Embora cascuda, a sola do pé do meu caríssimo cliente sangrava as polpas, eu imaginava a imensa dor que aquele homem estaria sentindo a cada insistente passeio das agulhas no ir e vir dos traços.
Eu suava, olhava para a pistola descansada na cômoda, para o mundarel de papel-toalha ensanguentado no cesto, e a cada higienização, percebia que não estava tendo sucesso. Fiz uma pausa. O resistente e silencioso homem abriu a boca:
-Busca uma pa nóis tomá!
Me deu uma nota de cinquenta e acendeu um cigarro, desci a escada e me dei conta que já estávamos a quase duas horas no quarto, peguei a cagibrina, voltei e o flagrei botando a sola do pé diante ao espelho e sorrindo com o cigarro entre dentes.
-Pricisa tê dó não fio! Carca essa porra aí! - me disse enquanto pegava a bebida.
Dei dois tragos em uma ponta de baseado, coloquei novo par de luvas e retomei o ofício.
O pé do bicho já era puro inchaço e vermelhidão, eu sofria, enquanto ele nem sequer mudava a expressão.
Foram três horas de atividades, falei um pouco da minha história conforme ele perguntava, dele, só arranquei que era garimpeiro e vinha do Piauí.
Trabalho acabado, não quis colocar a proteção. Calçou a bota, foi ao banheiro e se lavou.
-Quanto ti devo? - Perguntou com meio sorriso.
-Olha amigo um trabalho desse tamanho e nesse local complicado é pra mais de cem reais, aqui! Em São Paulo duzentos! Mas vou te cobrar o combinado... cinquenta.
-Toma! - Espichou uma nota de cem e retirando um pequeno saco de pano do bolso, abriu-o cuidadosamente em cima da cama e com os dedos pincelou algo muito pequeno. Me mandou estender a mão e pelos olhos arregalados, por um instante achei que estava me dando alguma droga rara. Soltou minúsculas pedrinhas amarelas na palma da minha mão e disse:
-Cuidado! Tem mais di duzentos reau aí, vai no seu Carlo do lado da rodoviária e troca!
Eram pequeninas pepitas de ouro, quase farelo. Agradeci e descemos a escada, ainda pagou a diária do hotel e se despediu com um aceno de mão.
O ouro somado ao dinheiro, me rendeu cerca de trezentos reais, que foram gastos naquela mesma noite. Porém, até hoje imagino de que formas aquela curiosa figura exibiu ou ainda exibe sua nada comum tatuagem de agúia...


Rafael Chaaban.

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