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quarta-feira, 23 de abril de 2014

Tenho medo de ir no circo e o palhaço rir da minha vida.

Certa vez li, de Lygia Barbiére Amaral, num trecho esporádico, onde um Palhaço fazia uma dissertação sobre o mágico e estranho fenômeno da tristeza e da alegria andarem juntas, que esse curioso e antológico personagem, tinha toda uma característica poética e sofrida em sua essencial composição.
Explicava que o nariz vermelho era de tanto chorar e cair de cara, a maquiagem, pra disfarçar os tristes traços marcados pela vida, os sapatos e as roupas largas e esfarrapadas, eram a doação ou o que sobrou pra ele usar... e que, o fazer rir, era o meio pelo qual, ainda que inconscientemente, o Palhaço usava pra suprir e amenizar sua dor e suas questões intrapessoais mal resolvidas. 


E naquele dia cinza, de áurea derrotista, no circo, olhei de maneira diferente para o Palhaço, vendo o que havia por trás das esquetes reprisadas e do jogo de luz. Pude sentir um peso mórbido naquela criatura. Assisti numa visão paralela ao espetáculo, um apanhado de cenas soltas, de abandonos, sonhos mortos, pessoas decepcionadas, acusações fundamentadas, correntes amarradas aos pés e a culpa, uma tamanha culpa, que formava em torno daquele pobre miserável um campo de força fluídica de cor escura... por um instante condenei, depois, senti pena, mais do que sentia de mim.


Notei que ele me encarou, e num susto de lampejo voltei à atmosfera comum à todos. O som outrora abafado em segundo plano, tomou altura exagerada em meus ouvidos, fazendo atordoar as idéias. Ainda no mesmo segundo, percebi que todos riam menos eu, a quem o Palhaço encarava. Forcei o sorriso, ri sem querer do que não sabia o que, e ele, reprovou em expressão. Depois caminhou aos saltos lentos e lúdicos até mim, olhou-me dentro da alma, e riu, gargalhou de verdade, como se estivesse enfim encontrado alguém num estado de espírito pior do que o dele. Riu com desabafo, com resignação. O som subiu, ele correu pra dentro, o público aplaudiu. Me senti peça do número, aquele laranja que é "usado" para dar vida à piada.
Levantei, e em todo o caminho de volta repeti para um espelho imaginário...
"Fui no circo e o Palhaço riu da minha vida".

Rafael Chaaban

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Nasceram num Carnaval

Era presente ainda em sua memória a expressão que ouvia de sua mãe na infância: "Carnaval é o aniversário do Capeta!".
Até porque, a fala fazia parte de um contexto no mínimo reforçador de tal visão. O pai de Alex, era diretor de bateria da escola de samba da vila, virava noites e mais noites fora de casa nos braços da putaria, regada à muito sexo, drogas e... Samba.
No sofá da sala, mãe e filho, nesta fase com seis pra sete anos, eram companheiros de uma estranha solidão prolongada. Entre um canal e outro, cenas dos desfiles pelo Brasil, os bailes gays e aquela porra toda. Quando Juarez aparecia em casa, era estranho, ninguém se falava direito, ele não ficava muito. Era uma quarta feira de cinzas quando seus pais se separaram.
Assim pelos próximos anos, Alex construiu uma imagem negativa diante o Carnaval, pra reforço, foi se tornando metaleiro, daqueles que acha que todo sambista deve ser degolado num ritual satânico, num cemitério com uma virgem, tomando vinho barato e... enfim, odiava samba e tinha o Carnaval como feriado maldito, só não menos pior porque não tinha aula.
Veio a adolescência e Alex, que se interessava e se desenvolvia musicalmente, já  assimilava novas influências, não gostava de samba, mas já possuía uma mente musical aberta.
Atingindo a maioridade, Alex embarcou numa dessas excursões de congressos de estudantes, foi de gaiato, e se deparou com uma realidade completamente nova. Uma viagem de mais de dezesseis horas de São Paulo à Goiânia, e um encontro de quatro dias entre estudantes de todo o país. Shows, festas, loucura, sexo, e entre tanta coisa que acontecia simultaneamente, Alex foi parar numa bateria de um bloco carnavalesco de uma galera de Cuiabá.
O que era aquilo? A alegria parecia estar nas gotas daquela garoa que caia e era espirrada pelas batidas das baquetas no bumbo. Alex assistia de camarote, na batida do Carimbó, às cenas mais interessantes possíveis, as danças, os sorrisos rasgados, a simpatia em sua forma plena, os beijos, os casais, os trios, os quartetos, as tetas, os excessos, a festa da carne... Aquilo tudo, permeado pela troca cultural musical dos participantes, tornava o momento ainda mais mágico.
Era só o primeiro, Alex ainda pegaria os blocos de rua paulistas e cariocas, seguido dos carnavais de interior, dos salões, de Salvador, o Vital no Espírito Santo, e a maestria do carnaval de Olinda.
E foi nesse último, que aconteceu, no meio da ladeira da Sé, no Bloco do Segura a Coisa à meia noite e meia da quarta feira de cinzas, o casamento. Com uma garrafa de Pitú numa mão, e um tubo de loló na outra, no passo da alegria desvairada, avistou uma Capetinha que vinha em sua direção, tão ou mais louca que ele. Não pensou, só gritou de braços abertos: "Feliz aniversário Capeta!!!" Se agarraram, beijaram, treparam naquela e em muitas outras noites.
Nasceram num Carnaval.

Rafael Chaaban.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Fui no puteiro pedir um abraço

- Já almoçou maluco? -Perguntou a puta.
- Não irmã. (olhando nos olhos).
- Então vamos lá fazer essa tatuagem e eu já aproveito e te dou o que comer. 
    Era meio dia de domingo, levantei o peso e saímos da rodoviária deserta.
    Apenas mais uma vez, era eu "adotado" por uma prima. Lembro-me do velho Nêgo Blue naquele quartinho da pensão da Tia Maria em Goiânia, tecendo explanações sobre as vantagens de andar sozinho na estrada. De fato, das muitas vezes em que me via sozinho, foram incontáveis as surpresas dos acontecimentos improváveis. Assim foram repetidas vezes as minhas histórias com prostitutas de estrada, histórias de humanismo, por trás do mundo voluptuoso do sexo e drogas. É claro que também há muito conteúdo de experiencias nesse âmbito, porém nesse texto se colocam em segundo plano.
    Fugindo do esteriótipo, observava o perfil dessa classe, além da carência, marcas da vida sofrida, resistência e problemáticas de ordem psicológica que são comum, tive a oportunidade de conhecer o lado humano, o instinto materno, a sutileza feminina, a fragilidade, a sabedoria inata, a necessidade de ser ouvida. 
    Zona de estrada é prato cheio para maluco de BR, tem dinheiro, bebidas, drogas, mulheres e clientes. Muitas das cidades pequenas nos interiores dos estados do Brasil, têm seu centro bem próximo da saída da cidade, onde é, na maioria dos casos, localizada a rodoviária, isso quando a BR não cruza o meio da cidadezinha. São nesses arredores de postos de gasolina e rodoviárias que se concentram os Bregas. São basicamente, bares simples, com luzes coloridas, som muito alto e várias mulheres, onde caminhoneiros, viajantes e mesmo habitantes da cidade, vão para beber, dançar e transar. Raramente, vi uma zona funcionar como boca de fumo, porém, ela é a sala de espera, agenciar a compra da droga de seu cliente, é só um dos adicionais dos serviços de uma puta. A droga sempre estará por perto.
    Sempre gostei de ir à zona sozinho, era mais fácil, já que não ia como um cliente, e também não poderia ser visto apenas como um vendedor, adotara a tática de sempre estar só, chegar consumindo uma bebida, e com apenas um painel pequeno de brincos, tornozeleiras e gargantilhas. A propaganda da tatuagem estava no próprio corpo e nas mãos sujas de tinta de henna.
    Na maioria das vezes, eu não pagava nem aquela primeira cerveja, era comum vender uma ou outra peça logo de cara, por estarem iniciando a noite, as meninas pagavam abatendo minha conta. Muitas pediam para reservar um trabalho até ela fazer dinheiro, e todas, perguntavam sobre tatuagem.
    Das minhas maiores ferramentas, somente o violão me era dispensado nessas atividades, já que só se fala aos gritos no brega. 
    Raramente recebi em sexo, era sempre em dinheiro, bebida ou droga. Foram muitas as vezes que fiz amizades com as primas, ao ponto de "forçarem" seus clientes à comprar meus trabalhos para presenteá-las. 
    A verdade, é que ao fim das noites, era visto como parte de cá delas, marcava-mos  tatuagens para o dia seguinte e à convite, dormia ali mesmo, onde a maioria delas viviam. Café da manhã, almoço, banho e até para lavar minhas roupas muitas se ofereceram, pareciam se compadecer de mim como numa contra transferência, e de fato, havia uma identificação, a vida estradeira, a capacidade de sobrevivência, os rótulos sociais, os obstáculos da vida, a saudade de algum lugar e de alguém... Acredito que algumas viam em mim um filho que ficou em algum lugar, e de certa forma se expurgavam um pouco das negligências maternais, me cuidando. Outras pareciam querer mostrar que não eram apenas máquinas de sexo, contavam de suas habilidades, dos seus tantos sonhos deixados para trás, de suas capacidades em fazer o belo.
    Eu era um bom ouvidor, escutava as histórias e bancava as estruturas emocionais sustentando o olhar interessado e neutro de julgamento. Fazia perguntas sobre detalhes dos acontecimentos narrados, dava ombro, enxugava lágrima, sorria junto e até comia.
    Muitas histórias, puta que me pediu pra levá-la embora, puta que me pediu para ficar, puta que me expulsou, puta que me roubou, puta que me patrocinou, puta que me pariu!
    Lembro da Léa, baiana, lá em Arraial, me ajudou a conseguir sair de um ciclo vicioso de auto-destruição, se preocupava comigo, providenciando alimentos entre outros. Houve também a mineirinha Paloza, que queria por que queria que eu à levasse embora de Patos de Minas, chegou à arrumar a mala e me blasfemou quando viu que eu realmente não faria aquilo. Em Imperatriz do Maranhão, conheci a Fátima, que era uma senhora gorda que adorava cantar, convivia com o sonho vencido de ser cantora, e parecia dar asas a este sonho novamente aos acordes do meu inseparável violão nas tardes quentes de baixo da figueira. Na Vila Mimosa, havia uma carioca de parar o trânsito, ali naquela que acredito ser a maior concentração de putas da América Latina, desfilava em trajes punks, moicano levantado, maquiagem preta, corpo escultural e muita tatuagem mórbida em tom preto sombreado. Era um dos programas mais caros daquela galeria onde eu consegui conquistar um espacinho para abrir meu escritório. Ela, dia após dia, fortaleceu uma parceria comigo, eu trazia gringos pra ela, ela trazia clientes para comprar de mim, dividíamos dolas do pó da Mangueira. Ela as vezes, pedia o colar mais caro do meu pano, duzentos, trezentos reais, quando ganhava, esperava o cliente ir embora e vinha trocá-lo por uma peça de vinte reais.
    Certa vez, uma paulista de seus cinquenta anos, dona de uma zona na região de Ribeirão Preto, me adotou como filho dela, não me deixava embora, me enchia de cuidados, lavava até minha mochila. Eu morava num hotel vizinho à ela. Contava muitas histórias, era algoz de si mesma, não se perdoava por ter deixado de dar criação ao filho, que segundo ela, tinha a minha idade, estava, acredito, expiando suas faltas no campo moral, afetivo e social, à maneira dela. Lembro-me, que sob protestos consegui convencê-la de que precisava seguir meu caminho, estava indo para Goiânia buscar matéria-prima e voltaria à São Paulo para preparar o pano para o verão em Santa Catarina, me demorei na cidade, não só por ela, mas porque queria levantar a passagem direto para o estado do Goiás, ao invés de ir pingando em cidades. Ribeirão é "praça boa" dinheiro girava, chegava na mão na mesma proporção que ia, cidade boa pra gastar dinheiro é aquela.
     Havia desistido de ir direto, pingaria no triângulo mineiro, levantei o da passagem, e naquela manhã me despedi de minha amiga maternal, ela chorou e fez recomendações de todo gênero, anotou seus contatos num papel, que me entregou com um envelope de papel grosso dizendo de olhos baixos: "Se você tem o mínimo de consideração por mim, abra esse envelope apenas na rodoviária antes de ir embora!". Sorri, ela me deu um tapinha na cabeça dizendo que não era dinheiro, mas algo de valor. As emoções contidas e incontidas do momento, fez com que a despedida ficasse fria, pois ao dizer esta última palavra, virou me abençoando a partida e entrando para os fundos... sem ao menos me olhar no olho.
    Parti, o momento me fez esquecer da curiosidade sobre o conteúdo do envelope, desci pelo centro, passei na praça, vi alguns malucos e peguei o beco para a rodô.
    Encostei a bagagem e peguei o envelope da bolsa, abri com cuidado, era uma foto sua antiga e uma passagem para Goiânia com horário aberto. Vibrei de alegria e não pensei duas vezes, precisava abraçar a minha amiga! Fui ver o quadro de horário, só havia um ônibus, que sairia em trinta minutos. Corri no Guarda volumes, deixei meu peso, e fui voando para o ponto de taxi.
    - Amigo,  toca pra Carvalho! Preciso ir no puteiro! Só tenho trinta minutos pra não perder o ônibus!
    - Caralho vai meter correndo?
    - Não, só vou dar um abraço!



Rafael Chaaban.

domingo, 24 de novembro de 2013

Matutagem Mórbida

De tão velha era bela.
Olhando-a nas reluzências do ar, tinha-se a impressão de uma daquelas pinturas de casas solitárias em meio há um lugar perdido e por isso tão belo da natureza.
De fato, sua posição por hora distava de outra qualquer obra humana pelo menos dez léguas. Estava lá, repousa ao chão nativo, ausente de qualquer calçamento que não, as toras tombadas de cedros, abraçados pelo solo formando uma trilha que se desenhava até a entrada torta.
O sapê sob o telhado de barro da varanda, embora falhado, ainda se valia de sua função, e naquela sombra descansava algumas plantas rasteiras.
Era alta, de palafita, fazia face ao norte, aquelas madeiras persistiam entre décadas e mudanças climáticas, num aprimoramento temporal curiosamente perfeito. 
A impressão que se tinha, era de que a casa, tinha uma raiz, assim como as árvores, que, a prendia e revigorava, fazendo-a cada vez mais parte do lugar.
Ninguém respondia, era fria de silenciosa. Naquela manhã de orvalho, fazia-se musicalmente visual, pelos contrastes de tons, os vivos e os mortos.
A porta abriu-se torta ao primeiro toque, exalou dali uma pressão cheirando a couro, madeira molhada, flores e sangue fresco.
Não houve quem não se ressentisse de solidão, medo, calor e frio. Um ar anfitrião, nos chamou a atenção para o próximo cômodo.
A palha trançada do buriti esvoaçava cansada na porta, dependurada, a se formar um véu que filtrava a entrada de insetos maiores.
Era um corpo humano, sem dúvida, já que, o que havia devorado-o, deixou as pernas, braços e cabeça.
Tinha um aroma quente, de vida, dava-se a impressão de que ainda pulsava sangue, tamanha a vividez das cores e do escorrer.
Agora, de perto, afirmo, é, ou era, uma mulher.
Que final violento, saber como se deu em detalhes era o desejo de todos os presentes, pois não foi só um ataque selvagem, dava-se a impressão, de que, uma fera havia saído de dentro daquela barriga, explodindo-a de dentro para fora e fugido pela janela.

Lembrei daquele matuto, e da sua história, sobre onças e mulheres grávidas...


Rafael Chaaban.


quinta-feira, 21 de novembro de 2013

A Santa Corda Maldita

Belém já havia nos segurado mais tempo do que planejávamos, o Pará em geral, foi um estado que me encantou, fazendo com que espichasse o tempo de parada por lá, era 2003 o ano, segundo semestre, e embalados pela catuaba selvagem e cerveja no saquinho da adega 24 horas do centro, íamos acampando na marquise da Lojas Americanas, de frente para o nosso escritório, a Praça da Republica.
Desde Gurupi, viajávamos em cinco ou seis malucos pela Belém-Brasília e seguíamos agrupados.
Apesar do saneamento precário, (principalmente pra quem vive na rua), Belém nos acolhia como uma avó nas férias escolares. O clima, esfregava na minha cara paulistana o sentido de "País Tropical", acordávamos já com uma chuva de mangas em plena praça central da capital, gente acolhedora,  festeira, simples e genuinamente ricas de culturas e diversidades.
Muita comida, caldo de piranha logo cedo pra repor a energia, frutas das mais variadas formas, suco de taperebá, sorvete de murici, doce de cupuaçu, nem vou falar de açaí, o verdadeiro, moído na hora, com farinha de puba e peixe, não aquele sorvetinho mentiroso do sudeste...
Até a hora da chuva, era fase de recuperação das noitadas passadas, tacaca, maniçoba, só comida forte, após, reiniciávamos o ciclo de bebedeira, violão e coisas do gênero.
Toda semana, íamos à cidades vizinhas coletar matéria prima para o nosso artesanato, dentes de boto, tubarão, esporão, cartilagens, escamas de pirarucu, penas, sementes das mais variadas formas e cores, Jupati, Carnaúba, Pau Brasil, entre tantas, havia ainda a madre pérola e a Jarina, resina fossilizada, era momento de armazenar material, o verão no Nordeste nos aguardava!
Eis que, toda vez que decidia partir, uma nova situação nos segurava, festas, chegadas de malucos, encomendas de material, shows... a bola da vez era o Círio de Nazaré.
O Círio, é um evento conhecido nacionalmente, pela sua grandiosidade, um evento religioso do qual eu não sabia quase nada à respeito.
Uns diziam que não valeria a pena esperá-lo, já que os fiéis não são um público que se atraiam pelo nosso tipo de artesanato, contra partida, uma verdade não se podia ignorar, a cidade receberia um enorme número de turistas, que em grande parte quer sim, levar uma lembrança do lugar.
Ficamos.
Se arrependimento matasse, e quase matou, o que se seguiu no tal do Círio foi basicamente o seguinte: Uma santa de gesso numa plataforma de onde sai uma corda, milhares de fiéis se pisoteiam para seguir a procissão e tocar na corda... não sei bem como é feito no final, mas creio que a corda é cortada em pedaços para que os sobreviventes levem um pedaço.
Durante o evento, além de não vender nada, tive meus trabalhos pisoteados em nome da fé, no dia seguinte, reparei que alguns "sortudos" que tinham um pedaço da corda, apareceram pedindo que nós, artesãos da praça, fizéssemos uma encastoação com arame, afim de transformar aquilo em um pingente, chaveiro ou amuleto. Notei num momento, que um senhor ofereceu cinquenta reais num pedaço da corda que um outro tinha em mãos, nesta hora fui iluminado pelos céus através de uma sacada, à principio, genial!
Corri para o canto comercial mais próximo e adentrei uma casa de materiais para pesca e afins. Pedi para ver os tipos de corda, e encontrei uma idêntica à corda santa.
-Dois metros desta, picado em pedaços de vinte centímetros, por favor.
Guardei na inseparável buroca de couro e voltei correndo para a praça, antes um pouco de chegar ao meu ponto, vi do outro lado da rua o senhor que há pouco, tentava arrematar um pedaço da corda do outro.
Atravessei correndo, e o chamei:
-Amigo, eu fiz um trabalho para uma senhora, e ela me pagou com alguns pedaços da corda da santa, vi que o senhor estava procurando por um desses, por acaso ainda está interessado? - lancei com ar de desdenho.
-Não rapaz, já comprei um pedacinho ali, vou cortar em dois para levar à uma pessoa querida. - respondeu.
-Hum, tudo bem, mas se acaso precisar de mais, tenho uns pedaços comigo... - disse tirando três pedaços da bolsa.
O homem arregalou os olhos dizendo:
-Puxa vida, bem maiores do que o meu, paguei cinquenta reais nesse fiapinho aqui... - mostrou-me.
-Por cinquenta reais eu teria te vendido dois desses! Trabalhados ainda! - esbanjei.
-Está brincando!? Pois então me veja dois pedaços desses!
Bingo!
Já havia conseguido reaver o investimento com cerca de duzentos por cento de lucro!
Acreditem ou não, vendi todas as cordas, comprei mais e coloquei-as em pedaços já trabalhados no pano em exposição.
A alegria acabou quando, outros muitos resolveram fazer o mesmo e de repente, a praça tinha mais de dez vendedores da corda santa! Obviamente, sujou. Alguns taxistas, perceberam o esquema e compraram briga.
Eu que já havia feito a boa, saí dali com a satisfação de um empresário que acabara de fechar um bom negócio. Já era noite, fui beber do outro lado da capital, num bar que eu gostava muito, o Beatles Forever.
Dia seguinte, como era da minha natureza, acordei duro, sem nem o da tapioca com manteiga. Havia bebido, comido e fumado a grana toda na noite passada.
Poucas horas após o despertar, senti um certo enjoo, uma dorzinha de barriga, e não demorou para que eu tivesse que correr ao banheiro público da praça.
Amigos, o que veio a seguir, foi uma das maiores barras que enfrentei em sete anos de estrada, nem tinha caído a chuva da tarde e eu já havia ido ao banheiro mais de vinte vezes, só saia água, tanto de cima como de baixo, a dor era aguda, e parecia piorar a cada hora passada. Não descia nada, nem comida nem água, era engolir e vomitar. Passei o dia deitado no chão, levantando só para ir ao banheiro, de meia em meia hora.
No início da noite, o Pedro Rasta, um gaúcho que vinha viajando conosco desde muito longe, apareceu na praça com uns papelotes de merla, ou pasta, como é chamada lá. Trata-se de uma variação da cocaína fumada, um estágio anterior ao crack.
Sempre usei a droga como anestésico, dores de dente, cabeça ou o que quer que fosse, desapareciam magicamente após um trago, por isso aceitei o convite do Pedrão e com muita dificuldade, levantei e me arrastei até o banco onde ele estava sentado. Me lembro que após dar o primeiro trago, a dor amenizou, cheguei à pensar em sair com ele para o mangueio, afim de levantar dinheiro para usar mais. Foi quando senti uma cócega nos pés, olhei para o chão e vi um rato bem criado com as duas patas em cima do meu pé, o susto fez com que eu levantasse rápido chutando o roedor para o meio da rua, em seguida, tudo ficou preto, caí desmaiado.
Acordei já no mocó, olhei para o lado e vi que uns malucos montavam a minha barraca, senti uma dor intensa e uma fraqueza absurda. Me arrastaram para dentro da barraca e alguém me obrigou a dar umas goladas numa água de coco. Deitei, pingava suor, sentia vontade de ir ao banheiro, mas não tinha condições pra isso, tentei pedir ajuda, tinha a impressão que se forçasse a voz, me cagaria ali mesmo. Foi quando, como um vulcão em erupção eu me lancei pra fora da barraca, esguichando um vômito como uma mangueira de pressão em direção à rua.
A noite foi resumida em vômitos e idas ao banheiro, não tinha mais dinheiro para pagar o velho que me cobrava cinquenta centavos por uso, minha imagem era tão debilitada, que o tiozinho da noite me deixou usar sem pagar mesmo.
Foi uma longa noite, devo ter perdido uns três quilos só naquelas oito horas...
Pela manhã me carregaram para a praça, e a dor atingira seu ápice, eu chorava e gritava como uma criança, um taxista se compadeceu e me colocou em seu carro, deixando-me num hospital público, sei lá onde.
Infecção intestinal diagnosticada, tomei sabe-se lá o que na veia por horas e horas, vomitava num balde que ficava ao meu lado, saí do hospital a noite, um pouco mais aliviado, porém, ainda com muitas dores e mal estar. Nessa caminhada de volta ao centro, chorei. Não mais o choro de dor, mas o choro existencial, o choro sentido, ao me olhar em tal situação, por um instante, minha mente viajou mais de quatro mil quilômetros e foi até a "minha casa", a casa dos meus pais, percebi que já fazia mais de um ano que eu não os via, meses que não ligava, tive vontade de parar num orelhão e ligar para a minha mãe, só para chorar, na tentativa de sentir seu colo. Mas não o fiz, não ligava quando estava bem, porque ligaria estando mal, eu quem decidi cair no mundo, causando enorme preocupação e dor à toda a família. Suportar as consequências era a minha obrigação.
Com muito custo, cheguei ao mocó, a galera estava a milhão, rolava de tudo, um gringo havia patrocinado umas rodadas de bebidas e drogas, Belém é uma das maiores concentrações de malucos de estrada, devia ter uns trinta no mocó, fora os que estavam em hotéis, casas de amigos e outros buracos.
Minha barraca estava armada, alguns camaradas estavam utilizando-a para se drogar, cheguei me arrastando, pedi licença e dormi.
No dia seguinte pela manhã, uma doida me trouxe uma garrafa cheia de cascas e raízes, com um liquido marrom escuro, me mandou tomar, perguntei o que era, me disse ser casca de Jucá. Era de um amargo indescritível, vomitei nos primeiros goles, mas senti que aquilo estava me ajudando, as dores foram amenizando, e o jucá, santo jucá, me salvou.
Três dias depois, já melhor, decidi sair um pouco da babilônia, fui à Icoaraci, distrito de Belém, lugar de pescadores, pelo menos na época, lá também era uma das fontes de matéria prima para meus trabalhos, além de ter uma orla bastante agradável com quiosques que me serviam de mocó a noite.
Comigo, seguiram alguns malucos, irmãos fiéis que viajavam comigo à tempos, Calango, Pedrão, Arrebite, Nando Coqueiro e outros. Eu ainda não estava cem por cento, chegamos lá de noitinha, a galera foi beber num canto e eu fui deitar num quiosque. estava fraco, e decidi não montar a barraca, apenas enrolei os painéis e amarrei junto com mochilas e tudo mais. Peguei no sono rápido e acordei com algo mexendo de baixo da minha cabeça, levantei e vi que minha mochila havia sumido. Rapidamente levantei, recolhi a bagagem e sai a procura da galera, já era alta madrugada, apenas dois quiosques no final da orla estavam abertos, fui pra lá. A galera estava lá bebendo, contei o ocorrido, e percebi que algumas ferramentas minhas estavam entocadas no buraco de uma árvore, na cobertura de sapê do quiosque vizinho, vi meu álbum de desenhos para tatuagens, fomos recolhendo tudo. O ladrão deveria estar ali, notei uns moleques com olhar estranho para nós e antes de que eu falasse algo, o Nando intimou um deles. O Nando Coqueiro, era um pernambucano gente boa, matuto, falava pouco, gostava de cantar ao som do violão, moleque de paz, honesto, não usava drogas, só gostava de maconha e uma boa cachaça, levava esse nome, devido ao seus trabalhos, fazia chapéus, cestos e muitas outras coisas com folhas de coqueiro e bananeira.
Naquela noite, Nando estava muito bêbado, e sua sede por justiça, não o deixou perceber que um dos caras que ele intimou de forma sagaz, estava com uma bigorna de aço na mão, era minha, eu à usava para bater pingentes e filigranas, era do tamanho de um ovo com as extremidades chatas, devia pesar uns três quilos. Nando foi como um gorila pra cima de um dos marginais, mas foi parado por uma bigornada a queima roupa bem na testa. Caiu na hora, apagado, o sangue jorrou de imediato, o samba de porrada se iniciou no quiosque, nativos versus malucos, era paulada, garrafada, alicatada, levei uma solada, adivinha onde? Sim, no estômago... os caras correram e nós ficamos com o Nando. Não sei de onde apareceu um carro e levou ele para o hospital, um grupo o acompanhou, eu recolhi o que pude das minhas coisas espalhadas. Que noite, que semana, que Círio!

Nando ficou bem, com uma bela cicatriz na testa, eu já estava inteiro, era hora de deixar Belém, o Maranhão nos esperava, as contas pareciam estar todas acertadas, havia perdido cinco quilos, até hoje, tenho aversão à cordas e procissões.



Rafael Chaaban.









segunda-feira, 2 de setembro de 2013

O LEITE (derramado) DA MULHER AMADA

O ano é de 2004, pré temporada de verão em Maresias no litoral norte de São Paulo. Sempre gostei de chegar antes do verão nas praias em que escolhia para passar a alta temporada, eram muitas as vantagens em me antecipar: Conseguir uma boa instalação, conhecer os moradores nativos da região, bem como os comerciantes, donos de bares, mercados, restaurantes, e afins.
Assim foi em Maresias, tive a alegria de reencontrar um casal de amigos do interior de São Paulo que estavam trabalhando no ramo de hotelaria, estavam bem instalados numa casa alugada no pé do morro, era mobiliada, agradável, com dois quartos, quintal e há dez minutos da praia.
Carregava meu pequeno herdeiro que acabara de completar três meses de vida.
À convite, dividimos a aconchegante casa com o casal. Tínhamos uma amizade muito saudável, os laços que nos uniam eram os da arte, o Estevão, era músico como eu e também artesão, tocava violão, cantava e era um exímio percussionista, a Mary, uma vocalista de sensibilidade ímpar. Pra completar, nossos gostos musicais andavam de mãos dadas em perfeita harmonia.
A cidade ainda estava "vazia", só os caiçaras com suas pranchas na praia, nos finais de semana alguns poucos turistas apareciam, nessa época, a praça de Maresias era liberada para a exposição de artesanato da malucada, havia espaço para todos, um quiosque de informações e uma rampa que dava acesso à praia.
Debaixo de um pé de jambolão fiz meu ponto, embora não haja lugar marcado, existe um código de ética oculto na estrada, que dá a preferencia de local pra quem chegou antes e/ou tem família. Na estrada esse é só mais um de muitos desses códigos de ética não combinados mas naturalmente respeitados. É claro, sempre há quem o desrespeita, assim como para as leis de uma cidade, e pra esses, sempre ocorre uma repressão.
Toda cidade tem um ponto "oficial" onde a malucada se encontra, geralmente na praça central ou numa avenida movimentada, esses pontos são chamados de "pedra". A pedra em Belém, é a Praça da República, em Goiânia, o Ginásio Rio Vermelho, Curitiba, o Largo da Ordem, Manaus, Praça da Polícia, em São Paulo há mais de uma pedra, São João, Paulista, República... em Maresias era ali na praça de frente pro mar.
Há um mês na cidade, eu já conhecia bastante gente, o dono e os funcionários da padaria, o Edu, do Bar do Edu, moradores, hoteleiros, turistas que tinham casa em Maresias e apareciam aos finais de semana, salva-vidas, surfistas, moleques, putas, traficantes e até o padre. O maluco de estrada, é um personagem incomum que atrai todo tipo de gente, acredito eu, que as pessoas (não preconceituosas) enxergam nele um ser desprovido de julgamentos, aquele que não julga ninguém, que tem a mente aberta, tem experiencia de vida pelas suas andanças, respeita a natureza, e não se surpreende com o segredo de ninguém e por fim, aquele que daqui uns dias vai sumir assim como apareceu. Por isso acredito ter sido tantas vezes escolhido para ouvir confidências e desabafos em geral.
Por estar vindo de uma comunidade Hippie localizada no Norte de Minas Gerais, lá pras bandas de Curvelo na beira do Rio São Francisco, estava eu com um lindo e vasto painel de naturezas, colares das mais variadas sementes que se possa pensar, jatobá, açaí, olho de tigre, pau brasil, carnaúba, saboneteira de macaco, coco, bambu, flamboyant, cedro, jacarandá, tiririca e outras mais. Havia ganhado muita sucata (punhado de material sortido como, pedras, sementes e miçangas) da galera que estava na comunidade mineira, e tinha material pronto pra venda em estoque para todo o verão.
Todo dia era dia de festa, churrasco, cervejada e muita piração. O verão é o auge do ano para os artesãos, muitos malucos passam o ano coletando material para estourar no verão. Assim eu seguia aumentando a coletividade e ganhando dinheiro, usava um chapéu de duende que havia ganho de um camarada em Poços de Caldas-Mg, não o tirava da cabeça e por isso, em Maresias era conhecido como "Gnomo". Assim como na história da formiga e da cigarra, sempre aparecia um maluco que não havia trabalhado o suficiente para a época propícia, e passava o dia entortando arame atrás do pano. Uma vez que mal podia carregar minha própria e imensa bagagem, doei muito material naquele verão, para micróbios que nada tinham e para malucos que já conhecia de outras divisas.
Tranquilo em relação a reposição da mercadoria que saía , passava as tardes tomando cerveja e tocando violão atrás do pano, sempre aparecia um doido com uma percussão, outro violão, uma gaita, flauta e até uma garrafa pra acompanhar. A música é uma porta que dá para um imenso universo, aprendi na estrada em todos esses anos que, onde você parar e dedilhar um violão, aparecerá alguém para interagir, a música é a linguagem universal que atrai o descalço, o engravatado, o honesto, o político... e assim eram as tardes na beira mar entre um mergulho e um baseado e outro.
O fluxo de malucos nas praias nessa época é muito grande, estacionado ali pude ver passar uma galera incontável, todos os dias chegavam e iam vários e variados tipos de malucos, músicos, brigões, micróbios, jagatás, poetas, mercenários, doentes, engraçados, circences, parasitas, gatunos, vegetarianos, latinos, punks, rastas, coroas, novatos, considerados, fugidos, atores e tantos mais. Eis que para a minha alegria, numa dessas levas de malucos reencontrei um grande irmão e parceiro de caminhada de muitos anos, o Xanxan!
O Xan é natural de Biriguí-SP, vinha do norte, havíamos nos visto pela última vez em Felixlândia-MG e Brasília-DF, respectivamente, onde tínhamos feito muito som, na ocasião passada ele viajava com o Cipó, outro grande parceiro de estrada e uma polonesa chamada Paulínia, que tocava lindamente um violino. O Xan é um dos percussionistas mais extraordinários que eu já conheci, viajava com uma tralha imensa, pratos, timba, bongô e vários outros adereços de percussão, andava sempre sozinho, era calado, não bebia muito e usava pouca droga. Tocava tudo de MPB mas era um fã incondicional de metal pesado, cabelos bem compridos e só não o rosto tatuado, conseguia ser mais magro que eu. Carregava sempre uma pequena asa delta com trabalhos de arame e linha.
Como todo reencontro, comemoramos com muita música e bebidas. O Estevão e a Mary também conheciam e gostavam do Xan, que já tinha feito muito barulho na cidade deles em outros carnavais... ficaram muito contentes em recebe-lo e agregá-lo ao nosso lar.
Foi então que numa das noites de churrasco e música em casa que notamos que éramos um grupo musical completo e de alta qualidade. Havia um bar chamado Iguanas Bar, que tinha uma decoração artesanal, bem a nossa cara, e foi lá que decidimos fazer uma proposta de nos apresentarmos numa noite qualquer. O dono do bar pediu pra que fizéssemos uma canja, sem plugar, apenas em acústico pra ele ouvir nosso som.
Assim foi, chegamos no dia combinado, antes do bar abrir e decoramos o palquinho coberto que ficava na parte de fora, no quintal do bar. O Estevão, é um artista plástico fenomenal, possuía um violão que havia pintado com a temática dos Ompaloompas, além disso tínhamos muitos adereços artesanais que penduramos e espalhamos pelo bar, filtros dos sonhos, mensageiros do vento, incensários de todos os tamanhos, a percussão era composta também por vários instrumentos artesanais, indígenas, feitos com sementes, e sucata reciclada, tudo muito colorido e cheio de vida. Trajávamos cartolas e chapéus, calças listradas e envelhecidas, capas, coletes e muitos adereços exclusivos feitos por nós. O Xan montava sua percussão de uma maneira curiosa, nada convencional, era na verdade uma timbatera, ele sentava em cima da timba, organizava as peças e tirava um som descomunal, quem ouvia da rua pensava que era um baterista e um percussionista tocando juntos. Um dia antes, havia chegado o Marco de Marília-SP, um colega nosso que é guitarrista, músico profissional e também passaria aquele verão na cidade. O Marco já tocava com o Estevão, a sintonia foi imediata. Antes mesmo de começarmos a tocar, o nosso possível contratante já se mostrava deslumbrado pelo efeito visual do grupo. Nosso repertório percorria Jorge Ben, Tim Maia Racional, Mutantes, Raul Seixas, Reggae, Caetano, Gil... e outros que a época e o local pediam, como O Rappa, Marcelo D2 e alguns mais. Eu e o Estevão dividíamos os vocais e violões base e nos alternávamos nas percussões, o Marco segurava na guitarra os solos, arranjos e harmonia, a Mary preenchia as vocalizações com sua doce voz e o Xan swingava nas batidas com a precisão de um relógio que nos mantinha sempre no compasso, como um maestro.
Modéstia a parte, nosso som era lindo, tocávamos com alegria de viver, a diversão estava no ar, fluía como a fumaça do incenso, penetrando em nossas almas e nos dando asas para voar por lugares jamais conhecidos por nós. Não deu outra. Fechamos todos os sábados no Iguanas Bar. O dono do bar nos ofereceu um bom cachê e bar aberto durante as apresentações, na alta temporada faríamos por couver.
Precisávamos agora de um nome para o grupo, eram muitas as idéias que brotavam daquelas cabeças enfumaçadas, mas não chegávamos nunca a um consenso. Até que o Estevão tirou de um livro que estava lendo, o nome "O LEITE DA MULHER AMADA", foi risadaria geral, mas depois das gargalhadas, nos olhamos e percebemos que era a nossa cara, ficou.
A sonzeira ia de vento em polpa, eu já estava há 3 meses na cidade e agora com O Leite da Mulher Amada, era ainda mais conhecido, o que me ajudava a faturar ainda mais com o meu artesanato. Numa das nossas apresentações, numa das noites no Iguanas Bar, contamos com a presença do Tomate, o guitarrista do Jô Soares que nos prestigiou e deu uma canja pra galera.
A temporada estava em alta, tudo lotado, gente chegando de toda parte, dezembro avançava e o reveillon se aproximava, recebemos a notícia de que o Iguanas Bar, já havia fechado com um DJ de São Paulo para tocar na virada do ano, antes de nos conhecer, decidimos então procurar um local par fechar um contrato.
Atiramos alto e acertamos, o bar Oasis, que ficava na beira mar, era um dos mais badalados da cidade. Era restaurante e bar, tinha a frente para a avenida e os fundos para a praia, procuramos o responsável, vamos chamá-lo de "M". Nos recebeu com ar prepotente logo dizendo "Cadê o material de vocês?" explicamos que não tínhamos nada em mãos pois éramos um grupo de amigos que haviam se encontrado para fazer um som sem compromisso naquele verão, M torcia o nariz para nós quando uma moça saiu de trás do balcão e perguntou entusiasmada:
-Eles vão tocar aqui M?
-Não, eles não tem nenhum material... - respondeu com desdenha.
-Há M... eles são bons! Vi eles tocando num barzinho esses dias, tava bombando!
A moça descreveu para M a nossa performance, de maneira a convence-lo da nossa qualidade. M nos convidou para tocar no fim de semana, mas estávamos apenas interessados no final de ano. Depois de muita chatice e uma oferta baixa de pagamento, fechamos com M, o reveillon era nosso.
Passou-se uma semana e apareceu em Maresias uma figura, vamos chamá-la de "L", era uma cantora profissional, tinha uma ótima presença de palco e uma voz forte, não me lembro bem se ficou hospedada no hotel em que a Mary e o Estevão trabalhavam, mas sei que se conheceram e ela foi nos ver tocar numa noite de sábado. No intervalo do som, a convidamos para uma canja, e a figura simplesmente arrebentou. Depois da apresentação fomos para a padaria 24 horas fazer um lanche e não sei bem como, a L entrou para o Leite da Mulher Amada naquele momento. Parecia bom ter um reforço profissional para o grupo, até porque não conhecíamos a mau caráter que era a L.
No primeiro ensaio conosco, L perguntou se já tínhamos  fechado algo para o fim de ano, ao saber do cachê oferecido por M à nós, pediu que deixássemos ela resolver essa questão, uma vez que já conhecia M de outros verões. Seu plano era ir sozinha até o Bar Oasis, e tentar vender o show de reveillon para M, não mencionaria que nos conhecia, diria apenas que estava na cidade com a sua banda. E dessa vez faria M assinar um contrato legal.
Assim aconteceu, L retornou com um contrato assinado por M, que contratava O Leite da Mulher Amada para o Jantar Show de reveillon do Oasis. M não sabia que estava contratando a mesma banda, até porque, quando nos contratou pela primeira vez nem sequer perguntou o nome do grupo. O detalhe principal dessa história, é que no contrato agora estabelecido, o valor do cachê havia triplicado!
Chegou o esperado dia, a instrução é que chegássemos ao meio dia, afim de montar o equipamento e deixar tudo pronto para mais tarde.  Fomos eu, Estevão, Marco e Xan. Chegando lá começamos a descarregar o material quando M nos interrompeu com seu jeito arrogante de ser:
-Oououou, que isso aê?
-Que isso o que cara? - respondeu Estevão de cara fechada.
-Vocês sumiram, eu contratei outra banda brother! - disse com certo prazer.
-Bom, então eu acho que você tem que nos pagar uma multa por quebra de contrato... - nesse momento Estevão estendeu uma cópia do contrato e ao ver que havia assinado com a mesma banda, M ficou vermelho e correu ao telefone para ligar para L.
Enquanto esbravejava no telefone, tratamos de agilizar a montagem, estava um belo dia de sol e o clima de festa estava no ar. O esquema montado no Oasis era perfeito, o palco ficava nos fundos do restaurante, numa área aberta, do lado direito do palco ficava o restaurante, do lado esquerdo a praia. Começaríamos a tocar às 20 horas, pagando uma quantia considerável, o freguês poderia desfrutar de um rico buffet e bebida a vontade, enquanto isso, faríamos um set musical leve, música de sala de jantar. Às 23:45, a entrada seria liberada para todos, as mesas retiradas e o acesso para a praia aberto, permitindo que quem estivesse na areia pudesse ver o show. Tudo muito bem preparado.
Voltamos para casa e começamos a concentração, comida leve e cerveja de leve para estarmos bem dispostos pra aquela noite especial.
Faltava cerca de 2 horas para a apresentação quando L veio com seu próximo golpe. Disse-nos que estava preocupada com a qualidade da apresentação, e que pensando nisso havia trazido um "reforço harmônico" para a banda. Tratava-se de três caras, que entraram na casa assim que ela fez o tal pronunciamento de preocupação. Foram nos apresentados por ela como músicos que trabalhavam com ela há muito tempo, ficariam na retaguarda, fazendo a marcação de percussão. Eu e o Xan, macacos velhos que éramos, nos entreolhamos percebendo a intenção de L, mas o resto da banda acabou embarcando na fantasia e abraçando a ideia. na verdade havia uma insegurança no ar, pela falta de experiencia, e pela própria situação a qual as coisas vinham se desenrolando. Mas o fato é que a manobra de L era para papar 4 partes do cachê, provavelmente aqueles caras eram seus parentes (existia uma forte semelhança), e ela os ofereceu jantar e bebida a vontade para, de quebra, tirar uma onda de artistas.
Àquela altura, não seria legal arrumar confusão entre o grupo, além do mais, naquele momento o cachê era o que menos me motivava, tinha uma boa grana guardada, e estava focado apenas em tocar.
Chegamos ao restaurante e iniciamos os trabalhos, um repertório agradável de MPB pra que as pessoas pudessem ouvir, comer e conversar à vontade.
O som estava impecável, muito bem equalizado, tudo correndo bem, o "reforço harmônico" que nem sequer instrumentos tinham, ficaram em segundo plano no palco, um com o pandeiro, outro com um ganzá e o terceiro com um xequerê. Enquanto isso, eu e Estevão, Marco e Xan, sim, suávamos para segurar literalmente o reggae. O restaurante estava lotado, M que até aquele momento mal havia olhado para a nossa cara, passou pela frente do palco e no intervalo de uma música para outra nos fez um elogio do tipo: "Legal galera, tão mandando bem!". M era um burguês, baixinho e troncudo, tinha um cabelinho loiro e crespo, que amarrava para trás, usava sempre camisetas de Jiu Jitsu e surf. Sua mãe, que ficava no caixa, era uma dessas madames carregadas de jóias e maquiagens fortes, que olhava para todos com ar de superioridade.
Faltavam menos de 10 minutos para a meia noite, a praia estava lotada, não podíamos ver pois havia uma especie de toldo que escondia o restaurante de quem estava na areia. e foi nesse momento, já ao som dos primeiros fogos de artifício, que o toldo foi desamarrado e se desenrolou ao mesmo tempo que uma bateria de chuva de prata era disparada do nosso palco, sem ter preparado nada, coincidentemente nessa hora estávamos tocando" Redemption Song" do Bob Marley, foi uma cena mágica que guardo com riqueza de detalhes até hoje, a areia estava completamente tomada de pessoas, que pareceram se voltar para o palco ao mesmo tempo em que se abraçavam e cantavam em coro com a gente. 2005 havia chegado, e na melodia daquela canção, a praia parecia estar em perfeita comunhão pela paz e pela harmonia de viver.
Passado esse momento nostálgico, embalamos uma sequência de músicas dançantes e agitadas e a galera inundou o restaurante dançando e cantando, havia gente em cima de mesas, dançando na água, fazendo rodas, nós nos olhávamos no palco e a energia era fora de controle, não conseguimos nem nos saudar de tão frenética que estava a sequência musical. Algumas lágrimas rolaram discretas pelo palco durante os momentos narrados.
Já eram 1:30 da manhã, quando decidimos fazer uma pausa, a primeira da noite, estávamos tocando há mais de 5 horas sem parar. O grupo tinha uma versatilidade incrível, trocávamos de posição a todo momento, todos tocavam de tudo, era um modelo estilo Os Titãs, cada música era cantada por um integrante. No momento do intervalo, era o Estevão quem estava à frente nos vocais e anunciou a parada. No mesmo momento, surgiu na frente do palco a figura de M, gritando algo do tipo: "CÊS TÃO LOUCOS? PARAR AGORA? PODE CONTINUAR! O BAR TÁ BOMBANDO!!". O Estevão o ignorou, colocando o violão de lado e dando as costas. Pois o pitbull loiro, não contente, subiu ao palco e ordenou que voltássemos a tocar imediatamente, Estevão o encarou de perto e disse que não, pois já era o tempo de fazer um intervalo. Os ânimos estavam exaltados, M e Estevão se encaravam em cima do palco, todos já tinham bebido bastante e aquele sentimento de traição de ambas as partes pareceram brotar novamente naquele momento. Os dois batiam boca em frente ao microfone ligado, de maneira a potencializar ainda mais o que diziam. A galera lá embaixo assistia o acerto de contas. M dizia que havíamos o enganado, Estevão o chamava de homem sem palavra, foi quando o estopim básico de qualquer briga foi acionado, a tentativa de separá-los.
Mary entrou no meio dos dois, que discutiam fervorosamente, não sei quem deu a primeira, só sei que numa fração de segundos, estavam agarrados em cima do palco.
O grupo todo entrou no birimbolo, M caiu por baixo de Estevão, e o usava como proteção da chuva de pancadas que vinham de todo lado, uma galera subiu no palco, eram todos contra M. Afinal, éramos a banda que estava fazendo a festa e tínhamos total empatia da galera.
Instrumentos viraram armas, uns aproveitaram para surrupiar microfones, outros queriam tirar uma casquinha daquele que tinha tesourado o som, eu dei apenas umas batidas de agogô na cabeça de M, mas estava mais interessado em tirar o Estevão das garras dele.
Depois de alguns minutos de confusão, conseguiram arrastar M para dentro do Bar, o cenário era de guerra, mesas viradas, garrafas quebradas, pedaços de instrumento por todo o palco e aos poucos as pessoas se dispersaram pela praia para outros bares.
M ainda queria pegar o Estevão, que foi escoltado rapidamente para casa junto com Mary. O Marco levou um mata leão de M como despedida, L e seu reforço harmônico, viraram peido no meio da batalha. Eu e Xan ficamos para recolher os cacos.
Antes de sairmos, M caminhou até nós, estranhamente não estava com raiva de nós, disse que fomos os únicos que não batemos nele, que faria o pagamento no dia seguinte, e que disséssemos ao Estevão que sumisse da cidade ou ele iria achá-lo e quebrar cada osso de seu corpo.
Pegamos uma marmita e fomos embora.
No dia seguinte, voltamos ao Oasis, L já havia recebido suas 4 partes do cachê, M decidiu fazer um cheque para cada integrante, de maneira que pagaria um por um em mãos, sabia que Mary e Estevão não voltariam lá, talvez nem o Marco... cobra engolindo cobra. Não duvido que L, que era amiga de M, possa ter ficado com as partes de Marco, Estevão e Mary também, o que sei é que eu e Xan, pegamos a nossa e torramos no mesmo dia no bar do Edu, era cerca de 350 reais para cada um.
 Assim, O Leite da Mulher Amada foi desfeito naquele verão, Estevão foi embora da cidade com Mary, Marco também sumiu,  L e o trio harmonia se apossaram da casa em que morávamos assim que saímos.

Como não adianta chorar pelo leite derramado, eu e Xan seguimos em "carreira solo" naquele verão por outras praias... afinal, o show não podia parar.

                    Rafael Chaaban.








sexta-feira, 30 de agosto de 2013