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domingo, 24 de novembro de 2013

Matutagem Mórbida

De tão velha era bela.
Olhando-a nas reluzências do ar, tinha-se a impressão de uma daquelas pinturas de casas solitárias em meio há um lugar perdido e por isso tão belo da natureza.
De fato, sua posição por hora distava de outra qualquer obra humana pelo menos dez léguas. Estava lá, repousa ao chão nativo, ausente de qualquer calçamento que não, as toras tombadas de cedros, abraçados pelo solo formando uma trilha que se desenhava até a entrada torta.
O sapê sob o telhado de barro da varanda, embora falhado, ainda se valia de sua função, e naquela sombra descansava algumas plantas rasteiras.
Era alta, de palafita, fazia face ao norte, aquelas madeiras persistiam entre décadas e mudanças climáticas, num aprimoramento temporal curiosamente perfeito. 
A impressão que se tinha, era de que a casa, tinha uma raiz, assim como as árvores, que, a prendia e revigorava, fazendo-a cada vez mais parte do lugar.
Ninguém respondia, era fria de silenciosa. Naquela manhã de orvalho, fazia-se musicalmente visual, pelos contrastes de tons, os vivos e os mortos.
A porta abriu-se torta ao primeiro toque, exalou dali uma pressão cheirando a couro, madeira molhada, flores e sangue fresco.
Não houve quem não se ressentisse de solidão, medo, calor e frio. Um ar anfitrião, nos chamou a atenção para o próximo cômodo.
A palha trançada do buriti esvoaçava cansada na porta, dependurada, a se formar um véu que filtrava a entrada de insetos maiores.
Era um corpo humano, sem dúvida, já que, o que havia devorado-o, deixou as pernas, braços e cabeça.
Tinha um aroma quente, de vida, dava-se a impressão de que ainda pulsava sangue, tamanha a vividez das cores e do escorrer.
Agora, de perto, afirmo, é, ou era, uma mulher.
Que final violento, saber como se deu em detalhes era o desejo de todos os presentes, pois não foi só um ataque selvagem, dava-se a impressão, de que, uma fera havia saído de dentro daquela barriga, explodindo-a de dentro para fora e fugido pela janela.

Lembrei daquele matuto, e da sua história, sobre onças e mulheres grávidas...


Rafael Chaaban.


quinta-feira, 21 de novembro de 2013

A Santa Corda Maldita

Belém já havia nos segurado mais tempo do que planejávamos, o Pará em geral, foi um estado que me encantou, fazendo com que espichasse o tempo de parada por lá, era 2003 o ano, segundo semestre, e embalados pela catuaba selvagem e cerveja no saquinho da adega 24 horas do centro, íamos acampando na marquise da Lojas Americanas, de frente para o nosso escritório, a Praça da Republica.
Desde Gurupi, viajávamos em cinco ou seis malucos pela Belém-Brasília e seguíamos agrupados.
Apesar do saneamento precário, (principalmente pra quem vive na rua), Belém nos acolhia como uma avó nas férias escolares. O clima, esfregava na minha cara paulistana o sentido de "País Tropical", acordávamos já com uma chuva de mangas em plena praça central da capital, gente acolhedora,  festeira, simples e genuinamente ricas de culturas e diversidades.
Muita comida, caldo de piranha logo cedo pra repor a energia, frutas das mais variadas formas, suco de taperebá, sorvete de murici, doce de cupuaçu, nem vou falar de açaí, o verdadeiro, moído na hora, com farinha de puba e peixe, não aquele sorvetinho mentiroso do sudeste...
Até a hora da chuva, era fase de recuperação das noitadas passadas, tacaca, maniçoba, só comida forte, após, reiniciávamos o ciclo de bebedeira, violão e coisas do gênero.
Toda semana, íamos à cidades vizinhas coletar matéria prima para o nosso artesanato, dentes de boto, tubarão, esporão, cartilagens, escamas de pirarucu, penas, sementes das mais variadas formas e cores, Jupati, Carnaúba, Pau Brasil, entre tantas, havia ainda a madre pérola e a Jarina, resina fossilizada, era momento de armazenar material, o verão no Nordeste nos aguardava!
Eis que, toda vez que decidia partir, uma nova situação nos segurava, festas, chegadas de malucos, encomendas de material, shows... a bola da vez era o Círio de Nazaré.
O Círio, é um evento conhecido nacionalmente, pela sua grandiosidade, um evento religioso do qual eu não sabia quase nada à respeito.
Uns diziam que não valeria a pena esperá-lo, já que os fiéis não são um público que se atraiam pelo nosso tipo de artesanato, contra partida, uma verdade não se podia ignorar, a cidade receberia um enorme número de turistas, que em grande parte quer sim, levar uma lembrança do lugar.
Ficamos.
Se arrependimento matasse, e quase matou, o que se seguiu no tal do Círio foi basicamente o seguinte: Uma santa de gesso numa plataforma de onde sai uma corda, milhares de fiéis se pisoteiam para seguir a procissão e tocar na corda... não sei bem como é feito no final, mas creio que a corda é cortada em pedaços para que os sobreviventes levem um pedaço.
Durante o evento, além de não vender nada, tive meus trabalhos pisoteados em nome da fé, no dia seguinte, reparei que alguns "sortudos" que tinham um pedaço da corda, apareceram pedindo que nós, artesãos da praça, fizéssemos uma encastoação com arame, afim de transformar aquilo em um pingente, chaveiro ou amuleto. Notei num momento, que um senhor ofereceu cinquenta reais num pedaço da corda que um outro tinha em mãos, nesta hora fui iluminado pelos céus através de uma sacada, à principio, genial!
Corri para o canto comercial mais próximo e adentrei uma casa de materiais para pesca e afins. Pedi para ver os tipos de corda, e encontrei uma idêntica à corda santa.
-Dois metros desta, picado em pedaços de vinte centímetros, por favor.
Guardei na inseparável buroca de couro e voltei correndo para a praça, antes um pouco de chegar ao meu ponto, vi do outro lado da rua o senhor que há pouco, tentava arrematar um pedaço da corda do outro.
Atravessei correndo, e o chamei:
-Amigo, eu fiz um trabalho para uma senhora, e ela me pagou com alguns pedaços da corda da santa, vi que o senhor estava procurando por um desses, por acaso ainda está interessado? - lancei com ar de desdenho.
-Não rapaz, já comprei um pedacinho ali, vou cortar em dois para levar à uma pessoa querida. - respondeu.
-Hum, tudo bem, mas se acaso precisar de mais, tenho uns pedaços comigo... - disse tirando três pedaços da bolsa.
O homem arregalou os olhos dizendo:
-Puxa vida, bem maiores do que o meu, paguei cinquenta reais nesse fiapinho aqui... - mostrou-me.
-Por cinquenta reais eu teria te vendido dois desses! Trabalhados ainda! - esbanjei.
-Está brincando!? Pois então me veja dois pedaços desses!
Bingo!
Já havia conseguido reaver o investimento com cerca de duzentos por cento de lucro!
Acreditem ou não, vendi todas as cordas, comprei mais e coloquei-as em pedaços já trabalhados no pano em exposição.
A alegria acabou quando, outros muitos resolveram fazer o mesmo e de repente, a praça tinha mais de dez vendedores da corda santa! Obviamente, sujou. Alguns taxistas, perceberam o esquema e compraram briga.
Eu que já havia feito a boa, saí dali com a satisfação de um empresário que acabara de fechar um bom negócio. Já era noite, fui beber do outro lado da capital, num bar que eu gostava muito, o Beatles Forever.
Dia seguinte, como era da minha natureza, acordei duro, sem nem o da tapioca com manteiga. Havia bebido, comido e fumado a grana toda na noite passada.
Poucas horas após o despertar, senti um certo enjoo, uma dorzinha de barriga, e não demorou para que eu tivesse que correr ao banheiro público da praça.
Amigos, o que veio a seguir, foi uma das maiores barras que enfrentei em sete anos de estrada, nem tinha caído a chuva da tarde e eu já havia ido ao banheiro mais de vinte vezes, só saia água, tanto de cima como de baixo, a dor era aguda, e parecia piorar a cada hora passada. Não descia nada, nem comida nem água, era engolir e vomitar. Passei o dia deitado no chão, levantando só para ir ao banheiro, de meia em meia hora.
No início da noite, o Pedro Rasta, um gaúcho que vinha viajando conosco desde muito longe, apareceu na praça com uns papelotes de merla, ou pasta, como é chamada lá. Trata-se de uma variação da cocaína fumada, um estágio anterior ao crack.
Sempre usei a droga como anestésico, dores de dente, cabeça ou o que quer que fosse, desapareciam magicamente após um trago, por isso aceitei o convite do Pedrão e com muita dificuldade, levantei e me arrastei até o banco onde ele estava sentado. Me lembro que após dar o primeiro trago, a dor amenizou, cheguei à pensar em sair com ele para o mangueio, afim de levantar dinheiro para usar mais. Foi quando senti uma cócega nos pés, olhei para o chão e vi um rato bem criado com as duas patas em cima do meu pé, o susto fez com que eu levantasse rápido chutando o roedor para o meio da rua, em seguida, tudo ficou preto, caí desmaiado.
Acordei já no mocó, olhei para o lado e vi que uns malucos montavam a minha barraca, senti uma dor intensa e uma fraqueza absurda. Me arrastaram para dentro da barraca e alguém me obrigou a dar umas goladas numa água de coco. Deitei, pingava suor, sentia vontade de ir ao banheiro, mas não tinha condições pra isso, tentei pedir ajuda, tinha a impressão que se forçasse a voz, me cagaria ali mesmo. Foi quando, como um vulcão em erupção eu me lancei pra fora da barraca, esguichando um vômito como uma mangueira de pressão em direção à rua.
A noite foi resumida em vômitos e idas ao banheiro, não tinha mais dinheiro para pagar o velho que me cobrava cinquenta centavos por uso, minha imagem era tão debilitada, que o tiozinho da noite me deixou usar sem pagar mesmo.
Foi uma longa noite, devo ter perdido uns três quilos só naquelas oito horas...
Pela manhã me carregaram para a praça, e a dor atingira seu ápice, eu chorava e gritava como uma criança, um taxista se compadeceu e me colocou em seu carro, deixando-me num hospital público, sei lá onde.
Infecção intestinal diagnosticada, tomei sabe-se lá o que na veia por horas e horas, vomitava num balde que ficava ao meu lado, saí do hospital a noite, um pouco mais aliviado, porém, ainda com muitas dores e mal estar. Nessa caminhada de volta ao centro, chorei. Não mais o choro de dor, mas o choro existencial, o choro sentido, ao me olhar em tal situação, por um instante, minha mente viajou mais de quatro mil quilômetros e foi até a "minha casa", a casa dos meus pais, percebi que já fazia mais de um ano que eu não os via, meses que não ligava, tive vontade de parar num orelhão e ligar para a minha mãe, só para chorar, na tentativa de sentir seu colo. Mas não o fiz, não ligava quando estava bem, porque ligaria estando mal, eu quem decidi cair no mundo, causando enorme preocupação e dor à toda a família. Suportar as consequências era a minha obrigação.
Com muito custo, cheguei ao mocó, a galera estava a milhão, rolava de tudo, um gringo havia patrocinado umas rodadas de bebidas e drogas, Belém é uma das maiores concentrações de malucos de estrada, devia ter uns trinta no mocó, fora os que estavam em hotéis, casas de amigos e outros buracos.
Minha barraca estava armada, alguns camaradas estavam utilizando-a para se drogar, cheguei me arrastando, pedi licença e dormi.
No dia seguinte pela manhã, uma doida me trouxe uma garrafa cheia de cascas e raízes, com um liquido marrom escuro, me mandou tomar, perguntei o que era, me disse ser casca de Jucá. Era de um amargo indescritível, vomitei nos primeiros goles, mas senti que aquilo estava me ajudando, as dores foram amenizando, e o jucá, santo jucá, me salvou.
Três dias depois, já melhor, decidi sair um pouco da babilônia, fui à Icoaraci, distrito de Belém, lugar de pescadores, pelo menos na época, lá também era uma das fontes de matéria prima para meus trabalhos, além de ter uma orla bastante agradável com quiosques que me serviam de mocó a noite.
Comigo, seguiram alguns malucos, irmãos fiéis que viajavam comigo à tempos, Calango, Pedrão, Arrebite, Nando Coqueiro e outros. Eu ainda não estava cem por cento, chegamos lá de noitinha, a galera foi beber num canto e eu fui deitar num quiosque. estava fraco, e decidi não montar a barraca, apenas enrolei os painéis e amarrei junto com mochilas e tudo mais. Peguei no sono rápido e acordei com algo mexendo de baixo da minha cabeça, levantei e vi que minha mochila havia sumido. Rapidamente levantei, recolhi a bagagem e sai a procura da galera, já era alta madrugada, apenas dois quiosques no final da orla estavam abertos, fui pra lá. A galera estava lá bebendo, contei o ocorrido, e percebi que algumas ferramentas minhas estavam entocadas no buraco de uma árvore, na cobertura de sapê do quiosque vizinho, vi meu álbum de desenhos para tatuagens, fomos recolhendo tudo. O ladrão deveria estar ali, notei uns moleques com olhar estranho para nós e antes de que eu falasse algo, o Nando intimou um deles. O Nando Coqueiro, era um pernambucano gente boa, matuto, falava pouco, gostava de cantar ao som do violão, moleque de paz, honesto, não usava drogas, só gostava de maconha e uma boa cachaça, levava esse nome, devido ao seus trabalhos, fazia chapéus, cestos e muitas outras coisas com folhas de coqueiro e bananeira.
Naquela noite, Nando estava muito bêbado, e sua sede por justiça, não o deixou perceber que um dos caras que ele intimou de forma sagaz, estava com uma bigorna de aço na mão, era minha, eu à usava para bater pingentes e filigranas, era do tamanho de um ovo com as extremidades chatas, devia pesar uns três quilos. Nando foi como um gorila pra cima de um dos marginais, mas foi parado por uma bigornada a queima roupa bem na testa. Caiu na hora, apagado, o sangue jorrou de imediato, o samba de porrada se iniciou no quiosque, nativos versus malucos, era paulada, garrafada, alicatada, levei uma solada, adivinha onde? Sim, no estômago... os caras correram e nós ficamos com o Nando. Não sei de onde apareceu um carro e levou ele para o hospital, um grupo o acompanhou, eu recolhi o que pude das minhas coisas espalhadas. Que noite, que semana, que Círio!

Nando ficou bem, com uma bela cicatriz na testa, eu já estava inteiro, era hora de deixar Belém, o Maranhão nos esperava, as contas pareciam estar todas acertadas, havia perdido cinco quilos, até hoje, tenho aversão à cordas e procissões.



Rafael Chaaban.