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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Nasceram num Carnaval

Era presente ainda em sua memória a expressão que ouvia de sua mãe na infância: "Carnaval é o aniversário do Capeta!".
Até porque, a fala fazia parte de um contexto no mínimo reforçador de tal visão. O pai de Alex, era diretor de bateria da escola de samba da vila, virava noites e mais noites fora de casa nos braços da putaria, regada à muito sexo, drogas e... Samba.
No sofá da sala, mãe e filho, nesta fase com seis pra sete anos, eram companheiros de uma estranha solidão prolongada. Entre um canal e outro, cenas dos desfiles pelo Brasil, os bailes gays e aquela porra toda. Quando Juarez aparecia em casa, era estranho, ninguém se falava direito, ele não ficava muito. Era uma quarta feira de cinzas quando seus pais se separaram.
Assim pelos próximos anos, Alex construiu uma imagem negativa diante o Carnaval, pra reforço, foi se tornando metaleiro, daqueles que acha que todo sambista deve ser degolado num ritual satânico, num cemitério com uma virgem, tomando vinho barato e... enfim, odiava samba e tinha o Carnaval como feriado maldito, só não menos pior porque não tinha aula.
Veio a adolescência e Alex, que se interessava e se desenvolvia musicalmente, já  assimilava novas influências, não gostava de samba, mas já possuía uma mente musical aberta.
Atingindo a maioridade, Alex embarcou numa dessas excursões de congressos de estudantes, foi de gaiato, e se deparou com uma realidade completamente nova. Uma viagem de mais de dezesseis horas de São Paulo à Goiânia, e um encontro de quatro dias entre estudantes de todo o país. Shows, festas, loucura, sexo, e entre tanta coisa que acontecia simultaneamente, Alex foi parar numa bateria de um bloco carnavalesco de uma galera de Cuiabá.
O que era aquilo? A alegria parecia estar nas gotas daquela garoa que caia e era espirrada pelas batidas das baquetas no bumbo. Alex assistia de camarote, na batida do Carimbó, às cenas mais interessantes possíveis, as danças, os sorrisos rasgados, a simpatia em sua forma plena, os beijos, os casais, os trios, os quartetos, as tetas, os excessos, a festa da carne... Aquilo tudo, permeado pela troca cultural musical dos participantes, tornava o momento ainda mais mágico.
Era só o primeiro, Alex ainda pegaria os blocos de rua paulistas e cariocas, seguido dos carnavais de interior, dos salões, de Salvador, o Vital no Espírito Santo, e a maestria do carnaval de Olinda.
E foi nesse último, que aconteceu, no meio da ladeira da Sé, no Bloco do Segura a Coisa à meia noite e meia da quarta feira de cinzas, o casamento. Com uma garrafa de Pitú numa mão, e um tubo de loló na outra, no passo da alegria desvairada, avistou uma Capetinha que vinha em sua direção, tão ou mais louca que ele. Não pensou, só gritou de braços abertos: "Feliz aniversário Capeta!!!" Se agarraram, beijaram, treparam naquela e em muitas outras noites.
Nasceram num Carnaval.

Rafael Chaaban.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Fui no puteiro pedir um abraço

- Já almoçou maluco? -Perguntou a puta.
- Não irmã. (olhando nos olhos).
- Então vamos lá fazer essa tatuagem e eu já aproveito e te dou o que comer. 
    Era meio dia de domingo, levantei o peso e saímos da rodoviária deserta.
    Apenas mais uma vez, era eu "adotado" por uma prima. Lembro-me do velho Nêgo Blue naquele quartinho da pensão da Tia Maria em Goiânia, tecendo explanações sobre as vantagens de andar sozinho na estrada. De fato, das muitas vezes em que me via sozinho, foram incontáveis as surpresas dos acontecimentos improváveis. Assim foram repetidas vezes as minhas histórias com prostitutas de estrada, histórias de humanismo, por trás do mundo voluptuoso do sexo e drogas. É claro que também há muito conteúdo de experiencias nesse âmbito, porém nesse texto se colocam em segundo plano.
    Fugindo do esteriótipo, observava o perfil dessa classe, além da carência, marcas da vida sofrida, resistência e problemáticas de ordem psicológica que são comum, tive a oportunidade de conhecer o lado humano, o instinto materno, a sutileza feminina, a fragilidade, a sabedoria inata, a necessidade de ser ouvida. 
    Zona de estrada é prato cheio para maluco de BR, tem dinheiro, bebidas, drogas, mulheres e clientes. Muitas das cidades pequenas nos interiores dos estados do Brasil, têm seu centro bem próximo da saída da cidade, onde é, na maioria dos casos, localizada a rodoviária, isso quando a BR não cruza o meio da cidadezinha. São nesses arredores de postos de gasolina e rodoviárias que se concentram os Bregas. São basicamente, bares simples, com luzes coloridas, som muito alto e várias mulheres, onde caminhoneiros, viajantes e mesmo habitantes da cidade, vão para beber, dançar e transar. Raramente, vi uma zona funcionar como boca de fumo, porém, ela é a sala de espera, agenciar a compra da droga de seu cliente, é só um dos adicionais dos serviços de uma puta. A droga sempre estará por perto.
    Sempre gostei de ir à zona sozinho, era mais fácil, já que não ia como um cliente, e também não poderia ser visto apenas como um vendedor, adotara a tática de sempre estar só, chegar consumindo uma bebida, e com apenas um painel pequeno de brincos, tornozeleiras e gargantilhas. A propaganda da tatuagem estava no próprio corpo e nas mãos sujas de tinta de henna.
    Na maioria das vezes, eu não pagava nem aquela primeira cerveja, era comum vender uma ou outra peça logo de cara, por estarem iniciando a noite, as meninas pagavam abatendo minha conta. Muitas pediam para reservar um trabalho até ela fazer dinheiro, e todas, perguntavam sobre tatuagem.
    Das minhas maiores ferramentas, somente o violão me era dispensado nessas atividades, já que só se fala aos gritos no brega. 
    Raramente recebi em sexo, era sempre em dinheiro, bebida ou droga. Foram muitas as vezes que fiz amizades com as primas, ao ponto de "forçarem" seus clientes à comprar meus trabalhos para presenteá-las. 
    A verdade, é que ao fim das noites, era visto como parte de cá delas, marcava-mos  tatuagens para o dia seguinte e à convite, dormia ali mesmo, onde a maioria delas viviam. Café da manhã, almoço, banho e até para lavar minhas roupas muitas se ofereceram, pareciam se compadecer de mim como numa contra transferência, e de fato, havia uma identificação, a vida estradeira, a capacidade de sobrevivência, os rótulos sociais, os obstáculos da vida, a saudade de algum lugar e de alguém... Acredito que algumas viam em mim um filho que ficou em algum lugar, e de certa forma se expurgavam um pouco das negligências maternais, me cuidando. Outras pareciam querer mostrar que não eram apenas máquinas de sexo, contavam de suas habilidades, dos seus tantos sonhos deixados para trás, de suas capacidades em fazer o belo.
    Eu era um bom ouvidor, escutava as histórias e bancava as estruturas emocionais sustentando o olhar interessado e neutro de julgamento. Fazia perguntas sobre detalhes dos acontecimentos narrados, dava ombro, enxugava lágrima, sorria junto e até comia.
    Muitas histórias, puta que me pediu pra levá-la embora, puta que me pediu para ficar, puta que me expulsou, puta que me roubou, puta que me patrocinou, puta que me pariu!
    Lembro da Léa, baiana, lá em Arraial, me ajudou a conseguir sair de um ciclo vicioso de auto-destruição, se preocupava comigo, providenciando alimentos entre outros. Houve também a mineirinha Paloza, que queria por que queria que eu à levasse embora de Patos de Minas, chegou à arrumar a mala e me blasfemou quando viu que eu realmente não faria aquilo. Em Imperatriz do Maranhão, conheci a Fátima, que era uma senhora gorda que adorava cantar, convivia com o sonho vencido de ser cantora, e parecia dar asas a este sonho novamente aos acordes do meu inseparável violão nas tardes quentes de baixo da figueira. Na Vila Mimosa, havia uma carioca de parar o trânsito, ali naquela que acredito ser a maior concentração de putas da América Latina, desfilava em trajes punks, moicano levantado, maquiagem preta, corpo escultural e muita tatuagem mórbida em tom preto sombreado. Era um dos programas mais caros daquela galeria onde eu consegui conquistar um espacinho para abrir meu escritório. Ela, dia após dia, fortaleceu uma parceria comigo, eu trazia gringos pra ela, ela trazia clientes para comprar de mim, dividíamos dolas do pó da Mangueira. Ela as vezes, pedia o colar mais caro do meu pano, duzentos, trezentos reais, quando ganhava, esperava o cliente ir embora e vinha trocá-lo por uma peça de vinte reais.
    Certa vez, uma paulista de seus cinquenta anos, dona de uma zona na região de Ribeirão Preto, me adotou como filho dela, não me deixava embora, me enchia de cuidados, lavava até minha mochila. Eu morava num hotel vizinho à ela. Contava muitas histórias, era algoz de si mesma, não se perdoava por ter deixado de dar criação ao filho, que segundo ela, tinha a minha idade, estava, acredito, expiando suas faltas no campo moral, afetivo e social, à maneira dela. Lembro-me, que sob protestos consegui convencê-la de que precisava seguir meu caminho, estava indo para Goiânia buscar matéria-prima e voltaria à São Paulo para preparar o pano para o verão em Santa Catarina, me demorei na cidade, não só por ela, mas porque queria levantar a passagem direto para o estado do Goiás, ao invés de ir pingando em cidades. Ribeirão é "praça boa" dinheiro girava, chegava na mão na mesma proporção que ia, cidade boa pra gastar dinheiro é aquela.
     Havia desistido de ir direto, pingaria no triângulo mineiro, levantei o da passagem, e naquela manhã me despedi de minha amiga maternal, ela chorou e fez recomendações de todo gênero, anotou seus contatos num papel, que me entregou com um envelope de papel grosso dizendo de olhos baixos: "Se você tem o mínimo de consideração por mim, abra esse envelope apenas na rodoviária antes de ir embora!". Sorri, ela me deu um tapinha na cabeça dizendo que não era dinheiro, mas algo de valor. As emoções contidas e incontidas do momento, fez com que a despedida ficasse fria, pois ao dizer esta última palavra, virou me abençoando a partida e entrando para os fundos... sem ao menos me olhar no olho.
    Parti, o momento me fez esquecer da curiosidade sobre o conteúdo do envelope, desci pelo centro, passei na praça, vi alguns malucos e peguei o beco para a rodô.
    Encostei a bagagem e peguei o envelope da bolsa, abri com cuidado, era uma foto sua antiga e uma passagem para Goiânia com horário aberto. Vibrei de alegria e não pensei duas vezes, precisava abraçar a minha amiga! Fui ver o quadro de horário, só havia um ônibus, que sairia em trinta minutos. Corri no Guarda volumes, deixei meu peso, e fui voando para o ponto de taxi.
    - Amigo,  toca pra Carvalho! Preciso ir no puteiro! Só tenho trinta minutos pra não perder o ônibus!
    - Caralho vai meter correndo?
    - Não, só vou dar um abraço!



Rafael Chaaban.