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sexta-feira, 30 de agosto de 2013

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Pontualidade

TRRRIIIIIIIIMMMMM (!)
Já eram cinco horas e meia de segunda-feira quando num só tapa, Marino calou o despertador. Tinha uma entrevista de emprego naquele dia agendada para as sete horas. Não era uma entrevista qualquer, havia algo de especial,  além da grandiosidade e prestígio daquela empresa, Marino havia sido indicado por um amigo influente, que lhe conseguiu um encaixe extra pra tal oportunidade. Ficaria mal se não aparecesse. Além do mais, já eram 4 meses de desemprego, as contas já não podiam esperar.
Por tanto, Marino não fez corpo mole, saltou sem dar ouvidos à preguiça que lhe pedia mais cinco minutinhos de cama. Tomou um banho mais do que rápido e foi em busca daquela camisa que pedira para ser passada no dia anterior. "Onde foi que a Zezé enfiou essa camisa?", falou consigo mesmo. Zezé era sua empregada, que para o seu azar, havia se esquecido de deixar a tal camisa passada.
Marino procurou e acabou achando a tal camisa amarrotada no armário. Zezé só chegaria às oito, o jeito era ele mesmo passar. Passavam-se também os minutos e Marino começava a se desesperar, ao terminar de se trocar já estava vinte e cinco minutos atrasado de acordo com o cronograma que havia desenhado na mente. O jeito foi sair sem tomar café. Desceu as escadas do prédio de dois em dois degraus, morava no terceiro andar, mas só notou que havia esquecido a carteira quando chegou ao primeiro. Voltou.
Quando finalmente saiu do prédio, se colocou à passos mais do que largos em direção à parada de ônibus que ficava há uma quadra e meia dali, notou que o ponto estava vazio, provavelmente o ônibus para o centro já havia passado, se não lhe falhasse a memória, só haveria outro dali à meia hora. Decidiu pegar um taxi. Caminhou mais três quarteirões até a avenida em busca de um carro, depois de quase vinte minutos de espera avistou um que vinha aparentemente vazio. Sinalizou, o motorista o ignorou. "Maldito filho da puta!", não se conteve em sua raiva.
Marino olhava para o relógio e seu pânico só aumentava, finalmente um taxista parou ao seu sinal, embarcou e pediu agilidade ao motorista, explicando-lhe a importância de seu compromisso. Porém, nem o melhor piloto de corrida poderia fazer algo diante do trânsito lento que encontraram ao sair da área periférica da cidade. Quando andava, o carro não passava de 40Km por hora. Faltavam quinze minutos para o horário marcado quando Marino resolveu saltar do carro e prosseguir à pé. Pelos seus cálculos, estava a umas dez quadras do endereço da entrevista. Cálculo impreciso, eram dezesseis quadras, que só não foram percorridas mais rápido porque o gasoduto estava em obras obrigando os pedestres a caminharem por um corredor estreito em duas filas, uma que ia e outra que vinha. Faltavam três minutos para as sete horas.
Chegou finalmente ao endereço, havia muita gente com faixas e cartazes na frente do prédio, era uma paralisação, grevistas faziam uma manifestação de maneira a impedir a entrada do prédio ao qual ele precisava estar em menos de um minuto. Deu a volta, entrou pelos fundos e subiu as escadas de serviço como um queniano em uma prova com obstáculos.
Os ponteiros marcavam exatas sete horas quando Marino pisou na sala de recepção, se dirigiu até a secretária:
-Bom dia, tenho uma entrevista marcada para as sete horas com o Sr. Vignolli. - tentava controlar a respiração e ajeitar a gravata.
-Pois não, qual é o nome do senhor?
-Marino Cândido de Paula.
-Pode aguardar naquele banco por favor, o Sr. Vignolli ligou avisando que está preso no trânsito e deve se atrasar pelo menos uma hora!

Esperou.


Rafael Chaaban.
                                           

domingo, 18 de agosto de 2013

O Anjo da fronteira


Essa história aconteceu em meados de 2005, na cidade de Corumbá Ms, no extremo Pantanal Sul Mato-Grossense. Cidade esta, rica em arte, turismo e de vasta natureza tropical. Porém, o que me trazia de volta àquela cidade era principalmente sua localização geográfica, fronteira com a Bolívia.
(Puerto Quijarro 2006)
Andando a pé, sem maiores complicações qualquer pessoa atravessava a fronteira (uma rua) e transitava por Puerto Quijarro,  de onde parte o Trem Da Morte, o famoso trem que nos leva até Santa Cruz De La Sierra. Bem, voltemos à Corumbá, nesta ocasião, havia eu conseguido uma barbada, um belo quarto espaçoso, arejado, com banheiro e geladeira. Fechei com o Sr. Davi, um mineiro gente boa que havia tirado uma puta da "vida fácil" e com ela vivia, um pacote econômico, era baixa temporada e circulava pouco dinheiro na cidade, o Sr. Davi me fez trezentos reais mensais a melhor acomodação de sua pensão, custava o dobro, mas diante de nossas caras cansadas e treinadas, dobramos rapidamente o simples homem. Ao contrário dos hotéis "cabeça de porco" que existem por aí, não eram as baratas o maior incomodo, mas sim as caranguejeiras, que em Corumbá são vistas a qualquer hora andando pelas ruas, praças e afins... Baratas mesmo, só me lembro daquelas gigantes, cerca de doze centímetros de cumprimento que voavam a dez, quinze metros de altura, como aqueles mosquitos que zanzam em torno da luz do poste até caírem tontos e agonizarem aos montes no chão.
Eramos eu, meu filho (com oito meses na época) e sua mãe. Vinhamos do centro-oeste e o trajeto até ali, havia me rendido muita matéria prima para meus trabalhos artesanais de escultura em massa epoxi. Além de um grande mostruário de peças, contava ainda com a renda das tatuagens fixas e temporárias e apresentações musicais em ruas, bares e onde quer que fosse. Não vou mencionar ainda, os aviões e quebra jerébas que as praias nordestinas me ensinaram a dar em gringos. Portanto, sempre tinha algum couro de rato na buroca.
Normalmente, na estrada, não me demorava muito nas cidades, uma semana, duas, e pegava o beco, como cantava o Chico Buarque, salvo nas capitais que em via de regra, eram pontos de apoio para reposição de material e badalação, ainda sim, eram poucas as capitais que me seguravam mais de um mês, Belém, Goiânia, São Paulo, Recife... mas o fato é que, em Corumbá a minha droga de preferencia custava 1 Real, enquanto no resto do país, eu pagava 10 Reais em porções ainda menores e de qualidade extremamente inferior àquela. Sim, 1 Real, havia ainda as promoções, 6 papelotes por 5 Reais - 12 por 10, e a caixa de fósforo (cerca de 12 gramas) por 25 reais. Pra "ajudar", havia feito forte "amizade" com um dos tantos patrões do tráfico na cidade em outras épocas (vou chamá-lo de "H"), recebia a visita dele no hotel à cada remessa nova que chegava na cidade, se já não bastasse, tinha eu já na primeira semana daquela temporada mais de dez tatuagens agendadas na favela, entre parentes e amigos do H. Resumindo, droga brotava de toda parte!
Nesta fase da minha vida, eu era um usuário ativo, super ativo, ativíssimo. Quando dormia, acordava usando, usava de manhã, à tarde, à noite e principalmente na madrugada, estava numa fase de fortes alucinações, visuais e auditivas, via aranhas enormes em toda parte, na parede do quarto, nas manchas de óleo no asfalto, e até no mostruário de brincos e colares, o que me fez dar um tapa na orelha de uma cliente certa vez achando que a caranguejeira (um brinco de semente de jacarandá) iria entrar no seu ouvido...
Minha companheira dessa época, era adicta como eu, mas naquele momento da vida, havia conseguido dar um tempo, principalmente pelo nosso filho, que por incrível que pareça, era saudável e muito bem cuidado. Eu não usava a substância na presença dele, ou seja, quase não estava com ele, chegava a alugar outro quarto no mesmo hotel para usar tranquilo, ou bancar um rodízio de pizza seguido de cinema e jogos eletrônicos para ela e suas amigas passarem a tarde e a noite fora, voltando apenas quando o pequeno já estava dormindo, exausto das atividades. Assim, se seguiam os dias, meses, já eram passados 3 ou 4 não lembro ao certo, quando a cidade realizou um grande festival de dança, shows de artistas famosos ao ar livre e muita agitação. Estava eu, preso mais uma vez àquela cidade, não conseguia ir embora, devia estar pesando cerca de 50 quilos, todos os dias prometia a mim mesmo que naquele dia iria fazer a grana da passagem e partir, mas nunca ia. A cidade mais próxima de Corumbá, era Miranda (sentido Campo Grande), que ficava bem afastada e a passagem não era barata. Eramos dois pagantes, e a essa altura, o material já havia se reduzido consideravelmente, dinheiro rolava, mas era pra comer e usar droga, não sobrava para a manhã seguinte.
Numa noite, estávamos expondo na festa da cidade, era uma sexta feira, eu tinha uma novidade que era exclusividade minha na cidade, a tatuagem de henna colorida, se uma tatuagem simples de henna custava a partir de 5 reais (6 dólas), uma colorida partia de 10 mangos, e chegava muitas vezes à 25, 35, 50 paus. Naquela sexta barulhenta e movimentada, eu estava arrebentando de fazer tatuagens no povo, havia uma fila de 6, 7 pessoas que se renovava a cada minuto, já estava tatuando à horas quando percebi que não tinha mais onde guardar dinheiro e parei, estava na compulsão e decidi fechar a loja. Dispensei o povo e sob protestos guardei as pastas de desenhos. Ajuntei aquele amontoado de notas e contei por cima, havia uns 250 Reais em notas de 2, 5 e 10. Estava atrasado com o Sr. Davi, fui ao hotel e dei aquele dinheiro pra ele antes que eu resolvesse usar a primeira dose. Voltei ao pano, já eram cerca de 23 horas e o clima estava pesado na rua, muita garrafa de bebida nas mãos de adolescentes e gangues periféricas da cidade que circulavam em bandos fazendo algazarra e quebrando vidros, achei melhor mandar minha parceira com o pequeno para casa. Fiquei, afim de arrumar algum troco, já que havia ficado sem nenhum centavo.
No quarto havia mantimentos na geladeira.
Pouco antes de ela partir, um grupo de moleques pararam diante ao meu pano, e começaram a pegar os trabalhos e perguntar preços simultaneamente (velha tática de roubo em grupo), já preparei meu Chico Doce (uma barra de madeira maciça que sustentava uma asa delta de colares) e fiquei pronto para esmagar um rato. Um dos sacanas apoiou uma mão no pano, enquanto escorregava um colar peruano de argolas de alpáca para o bolso, e foi naquele braço de apoio que eu dei com tanta força, que por um instante pensei ter decepado o braço do pilantra, na volta ainda peguei mais uns três na pancada enquanto corriam e gritavam me ameaçando... Olhei para a doida e ordenei: "Dá linha com esse moleque, que a pista tá remosa!". Ela se pôs em marcha firme empurrando o carrinho e sumiu da minha vista à caminho do hotel.
Estava tremendo ainda de adrenalina, pedi um trocado para um capixaba companheiro de estrada que expunha ao meu lado e fui tomar uma no bar pra dar uma estabilizada.
Quando voltei, me deparei com uma cena assustadora! Em meio a multidão de galera, a mãe do meu filho vinha com ele no colo agarrado, à passos mais do que largos, quase correndo, chorava com um tom desesperado no olhar! Meu estômago congelou e bateu na garganta, em frações de segundo imaginei que os moleques haviam feito algo à eles. Comecei a caminhar em sua direção e gritava: "O que foi? O que foi?", ela foi se aproximando e dizia chorando:  "Eu não tive culpa! Não tive culpa!".
Já esperava receber o corpo do meu filho sem vida, era uma cena de terror e o tempo pareceu congelar. Finalmente ela me entregou ele nos braços, ainda repetindo: "Não foi minha culpa! Pelo amor de Deus!". Peguei-o no colo e o virei para mim, estava quieto, com os olhos arregalados, não chorava, perguntei de novo o que havia acontecido, e ela disse ainda descontrolada e em prantos: "Ele se queimou, se queimou no fio do ventilador, foi muito rápido, ele puxou e o fio explodiu na mão dele... ". Foi quando percebi que ele estava com a mãozinha fechada e os dedos pretos, girei a pequena mãozinha e no vão entre o dedão e o indicador dava pra ver a carne viva, tentei abrir a mão dele e me apavorei com o que vi! Havia uma queimadura em todo o vão dos dedos, pedaços de fio de cobre estavam cravados na carne branca e esponjosa que se mostrava crua e chamuscada, era uma queimadura de terceiro grau, de cerca de 7 centímetros de circunferência.
Mandei que ela fechasse o pano e me corri dali com ele, eu estava sem camisa e descalço, vi um taxi e não sei nem como, me enfiei dentro dele com passageiro e tudo, me deixaram no PS que ficava há umas 10 quadras dali. Entrei no Pronto Socorro gritando: "EMERGÊNCIA! EMERGÊNCIA", driblei uma mulher que me pediu pra fazer uma ficha e entrei no corredor de acesso restrito aos médicos, invadi o primeiro consultório que vi, um médico atendia um paciente, se espantaram com a minha entrada, mas ao ver a gravidade do caso o médico deu prioridade imediata à nós. Levaram ele para a sala de curativos, eu estava alterado e foram preciso dois guardas municipais para me segurar e me convencer a fazer a porra da ficha.
Fui ao guichê de entrada, não tinha documento algum, expliquei que era estradeiro e nessa hora chegou minha companheira com os documentos e meus trampos enrolados de qualquer jeito numa cesta. Deixei ela fazendo a ficha e voltei pra sala de sutura. O médico veio ao meu encontro e me explicou que ele estava bem, a queimadura era grave, já haviam feito a limpeza e o curativo, ele ficaria de tala por dois dias e depois deveríamos trocar o curativo diariamente. Nesse momento me pediu calma e frisou a importância de que eu comprasse e desse imediatamente os remédios que ele receitaria. Segundo ele, se o tratamento medicamentoso não fizesse o efeito desejado, o ferimento poderia se expandir afetando o tendão, e aí a coisa se complicaria e implicaria em sequelas graves prejudicando o movimento dos dedos.
Meu bravo menininho veio com os olhos úmidos, mas já não chorava mais, tinha uma tala que ia até o meio do bracinho. Procurei saber se haviam disponíveis os remédios os quais ele necessitaria mas não tive sucesso. Eram remédios caros e fortes, uma lista de 9 itens entre medicamentos e curativos. Saímos do hospital ainda em estado de choque com a situação, já devia ser 1 ou 2 horas da madrugada, havia apenas uma farmácia aberta na cidade, nos caminhamos para lá, entrei e pedi par a atendente fazer o orçamento daqueles medicamentos.
120 Reais.
Comecei a ensaiar o pedido de ajuda para ela quando um senhor com estilo de fazendeiro (muito comum naquele lugar) entrou na farmácia e caminhou em nossa direção, brincou com o pequeno que estava quieto no meu colo com sua tala por sobre meu ombro. Perguntou o que havia acontecido, contei rapidamente e já emendei: "Amigo, por favor, será que pode nos ajudar? Tenho uns trabalhos legais aqui comigo, se puder comprar algo... pelo menos pra que possamos comprar os remédios essenciais que são muito caros...", coloquei em suas mãos uma faca embainhada toda trabalhada do cabo a bainha, com couro de sucuri, pedras semi-preciosas, dentes de jacaré e escamas de pirarucu. Ele à pegou, elogiou o trabalho, virou-se para a atendente e disse: "Pode pegar os itens da receita deles e por na sacola!". Fiquei emocionado, passei o pequeno para o colo da mãe e me virei para embalar a faca para ele, é verdade que aquela peça valia 3 vezes o valor em questão, mas àquela altura, estava mais do que bem vendida! Quando me voltei com a peça embrulhada em mãos, perdi o homem de vista, não estava mais dentro da farmácia, fui até a porta e a rua era deserta, nem carro, nem pessoas... voltei desolado para o balcão e pensei que o fazendeiro bondoso havia desistido da compra e nos abandonado, mas para o meu espanto, a caixa me entregou a sacola com os medicamentos e a receita e nos desejou boa sorte. Perguntei sobre o homem e ela não me respondeu atendeu o telefone e se voltou para o interior da farmácia. Olhei para dentro da sacola e havia uma nota fiscal atestando que aqueles itens foram pagos. Saímos sem entender o que aconteceu. Pra onde foi aquele homem? Como sumiu da nossa vista tão rápido?
Naquela noite fiquei de joelhos no pé da cama até amanhecer, o anjinho dormia medicado. Prometi que se ele melhorasse não usaria mais droga enquanto ali estivesse e iria embora daquele lugar!
Em três dias ele já estava batendo palmas e arrancando os curativos com a boca, nem parecia que tinha uma queimadura tão séria, em uma semana, sem usar drogas, levantamos as passagens e saímos da cidade.
O ferimento sarou por completo. Hoje com 9 anos, ficou uma pequena  cicatriz quase imperceptível em sua mão.

NE: Antes de sair da cidade, peguei uma certa quantia da droga para usar quando chegasse no próximo destino. Tecnicamente, não quebrei a promessa. Um ano depois, estaríamos de volta à Corumbá

Rafael Chaaban.